A agressão atinge a todas, impactando ainda mais, como se sabe, negras, pobres, trans ou lésbicas, por força da intersecção dos marcadores de gênero, raça, classe, identidade ou orientação sexual
(Blog/Marie Claire, 02/03/2020 – acesse no site de origem)
Talvez a primeira noção equivocada a respeito da violência que é praticada contra meninas e mulheres no âmbito doméstico, familiar ou das relações de afeto seja a de que esse problema está distante, ou que diga respeito a uma determinada classe social, raça, religião ou orientação sexual diferente da sua. Ao contrário, a violência de gênero atinge a todas, impactando ainda mais, como se sabe, negras, pobres, trans ou lésbicas, por força da intersecção dos marcadores de gênero, raça, classe, identidade ou orientação sexual.
Outro erro é acreditar que com a ampliação do debate sobre o tema nos últimos anos, estaríamos todas/os preparadas/os para lidar com a questão ou mesmo para ajudar alguém próximo que a sofreu. Infelizmente não. Daí a importância do recém-lançado Dossiê Violência Sexual pelo Instituto Patrícia Galvão, com o qual pude colaborar, trazendo noções que podem auxiliar nesse processo de acolhimento, orientação e proteção de quem sofreu violência.
O primeiro ponto parece evidente, mas ainda é necessário dizer: a culpa não é da vítima. A violência de gênero não diz respeito à esfera individual, privada, tratando-se de um fenômeno mundial. É comum a própria vítima buscar, ainda que inconscientemente, justificativas para violência que sofreu no seu comportamento, culpabilizando-se, como se de alguma forma tivesse “merecido a violência”. Quando não ela, a sociedade julga sua “reputação”, como forma de identificar os “motivos da violência”, principalmente quando o perfil do autor não é compatível com o que se espera de um criminoso, sendo, ao contrário, um trabalhador, “pai de família”, bem relacionado socialmente. Portanto, tudo o que a vítima não precisa é que você promova o julgamento moral de suas ações.
Proporcione o acolhimento de quem sofreu violência de maneira a evitar que ela se sinta sozinha. O isolamento é um dos fatores que levam mulheres em situação de violência a não buscarem ajuda. Fornecer essa rede de apoio, familiar ou comunitária, é fundamental para que se sintam fortalecidas. Portanto, ao invés de questionar uma mulher que sofre num relacionamento abusivo sobre sua “falta de atitude”, entenda antes seu grau de desconhecimento sobre a gravidade da situação, o medo, a vergonha, a culpa, a falta de amparo, de autonomia financeira ou a reiteração da violência que mina sua capacidade de resistência.
No processo de acolhimento de alguém que sofreu violência: escute com paciência, compreendendo que raramente a vítima terá condições de fornecer relatos pormenorizados da situação. Evite cobrança de detalhes impossíveis de serem fornecidos – tempo exato, ordem cronológica dos fatos e procure respeitar a inibição, as falas desconexas, os lapsos de memória, porque tudo pode ter relação com o pós-trauma. Afaste-se dos preconceitos e julgamentos morais, para, ao contrário, imaginar pressões e ausências de mecanismos para que aquela pessoa tenha agido daquela maneira.
Por fim, saiba que quando alguém sofre violência de gênero, é preciso pensar nos eixos de atendimento voltados à saúde, assistência social/psicológica e também da justiça. Lembre-se de orientar essa vítima sobre a importância de buscar, no caso da violência sexual, física ou até psicológica, primeiramente, o sistema de saúde. No caso da violência sexual, a Lei 12.845/13 (do minuto seguinte) garante atendimento imediato, obrigatório, humanizado e por equipe multidisciplinar nos hospitais que integram o SUS. Ali será fornecido tratamento adequado para prevenir as doenças sexualmente transmissíveis e HIV, bem como para prevenir a gravidez. Na hipótese de gravidez decorrente de estupro, a vítima tem direito à interrupção da gestação, caso seja essa sua decisão. No âmbito do sistema de justiça, tem direito de registrar os fatos na Delegacia mais próxima, na qual será lavrado Boletim de Ocorrência e instaurado inquérito policial.
Em síntese, não há justificativa para a violência, a culpa nunca é da vítima e a alteração do quadro alarmante que nosso país enfrenta depende de uma mudança radical de postura de todas/os nós.
Silvia Chakian é promotora de justiça, mestre em Direito Penal e autora do livro A Construção dos Direitos das Mulheres (@silvinhachakian).