Denúncias de violência doméstica voltam a subir e crescem 73% na Itália

14 de maio, 2020

Campanhas estimularam mulheres a registrar agressões mesmo durante quarentena

(Folha de S.Paulo, 14/05/2020 – acesse no site de origem)

Primeiro o silêncio, depois um dilúvio de pedidos de ajuda. Assim reagiram durante a quarentena as mulheres na Itália que sofrem violência dentro de casa.

Logo após o início do confinamento total, em 9 de março, as ligações para os centros que combatem violência doméstica haviam caído pela metade. Nas semanas seguintes, após campanhas de divulgação, os contatos foram retomados com força.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística (Istat), entre 1° de março e 16 de abril, houve aumento de 73% no número de telefonemas válidos (excluídos aqueles por engano), na comparação com o mesmo período do ano anterior, para o principal serviço público antiviolência contra a mulher, oferecido pelo telefone 1522.

De acordo com o instituto, equivalente ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), das 5.031 ligações, 40% foram feitas por mulheres pedindo ajuda ou relatando episódios de violência e perseguição.

Foram, portanto, 2.013 vítimas atendidas pelo serviço durante a quarentena, um aumento de 59% em relação ao mesmo período de 2019. “O número 1522 parece ter representado um instrumento de muito apoio às vítimas de violência durante o ‘lockdown’. O crescimento das chamadas válidas não é nem comparável àquilo que foi registrado nos anos anteriores”, diz o relatório do Istat, publicado nesta quarta-feira (13).

Segundo o instituto, o aumento nos pedidos de ajuda não permite dizer que os casos de violência cresceram na mesma proporção. “De fato, esse aumento [nos pedidos de ajuda] foi também uma influência da intensificação da campanha de informação que teve como meta conscientizar as mulheres e ampliar o uso dos instrumentos para pedir apoio.”

As campanhas na TV e nas redes sociais surgiram na segunda quinzena de março, depois que entidades que trabalham com violência doméstica perceberam a queda nos contatos feitos pelas vítimas.

Além de reforçar os números de telefone que recebiam pedidos de ajuda, as peças davam dicas de como fazer uma ligação em segurança: na hora de ir ao supermercado, colocar o lixo para fora, passear com o cachorro.

Segundo o Istat, “a partir de 22 de março, o aumento nas chamadas ao 1522 teve uma evolução exponencial”.

O governo italiano encabeçou uma das campanhas, que serviu também para divulgar que o pedido por socorro poderia ser feito por chat, 24 horas por dia e em quatro idiomas. Durante a quarentena, foram 1.150 contatos pelo aplicativo, 986 a mais que nos mesmos dias do ano passado.

A Itália foi o segundo epicentro do coronavírus, depois da China, e o primeiro país do mundo a entrar inteiramente em quarentena, que durou dois meses e começou a ser relaxada nesta semana.

“No início, todos, mulheres e homens, ficaram atordoados com o fato de que precisavam ficar em casa. Certamente as mulheres não entendiam nem mesmo como podiam reagir, não tinham informações sobre como proceder”, explica Simona Lanzoni, vice-presidente da Fundação Pangea, que atua em centros de acolhimento de vítimas de violência doméstica na Itália, Colômbia, Índia e Afeganistão.

“Nesse começo, muitas organizações alertaram para o fato de que nem sempre a casa representa o lugar ideal para ficar durante um ‘lockdown'”, diz Lanzoni, também membro do Grevio, o grupo de especialistas em ações contra a violência contra a mulher do Conselho da Europa.

Em 93% dos casos compilados pelo Istat, o ambiente doméstico foi o lugar onde a violência contra a mulher aconteceu na quarentena. E, segundo 75% das vítimas, as agressões se repetem há anos.

As estatísticas oficiais do governo sobre violência doméstica ainda não foram atualizadas com todo o período do ‘lockdown’. Mas ao menos 11 casos de feminicídio aconteceram nas últimas semanas, segundo registros da imprensa italiana.

Ao mesmo tempo, entre 1° e 22 de março, os últimos dados oficiais disponíveis, houve queda de 43,6% nas denúncias de maus tratos domésticos, na comparação com 2019.

“Isso não quer dizer que não há violência, só é mais difícil desvendá-la. Nesse momento de quarentena, é mais complicado para a mulher decidir sair de casa, ir para um refúgio, até por medo do coronavírus. Muitas decidiram inclusive continuar na situação de violência. Elas procuram alguém para conversar, desabafar, mas isso não quer dizer que saíram da violência”, afirma Lanzoni. “Ainda faltam pesquisas específicas, mas seguramente a violência dentro de casa aumentou.”

Os números registrados pela ONG Donne in Rete, uma das organizações italianas mais importantes no combate à violência contra a mulher, sugerem o mesmo.

Em 2018, último ano com dados compilados, houve uma média mensal de 1.643 pedidos de ajuda em mais de 80 centros antiviolência na Itália.

Durante a quarentena, esse número praticamente dobrou, com cerca de 6.000 pedidos de ajuda recebidos entre 2 de março e 3 de maio.

“Inicialmente também os nossos centros registraram uma queda na procura pela metade, mas isso foi a primeira fase do ‘lockdown’, quando tudo parecia estar fechado e era pedido a todos para ficar em casa. Os centros antiviolência nunca fecharam, então rapidamente começamos uma campanha de informação para indicar às mulheres como ligar em segurança.

Aí nossos números de emergência começaram a tocar”, conta Antonella Veltri, presidente da Donne in Rete.

Uma variação relevante, segundo ela, é o percentual de mulheres que procuraram apoio nos centros da rede pela primeira vez, em torno de 30%.

A maioria dos contatos feitos durante a quarentena foi de vítimas que já tinham um histórico de atendimento. “Em geral, 78% das mulheres que nos procuram o fazem pela primeira vez”, afirma.

E isso pode indicar que muitas vítimas ainda não tenham se manifestado em relação a episódios de violência sofridos nas últimas semanas, situação que pode mudar agora que o confinamento está menos rígido.

“Acho que nosso trabalho vai continuar a aumentar. As mulheres que vivem a dimensão da violência em suas relações de família, tendo maior liberdade de movimento, vão procurar mais ajuda”, avalia Veltri.

Lanzoni, da Fundação Pangea, concorda. “Penso que os pedidos de apoio aos centros antiviolência, os pedidos de separação e as denúncias vão aumentar agora. O coronavírus deu mais evidência às situações de violência. Isso vai permitir a muitas mulheres dizer ‘chega’. Depois de dois meses fechada em casa com violência, se explode. ‘Agora que posso sair, eu decido que isso basta’, espero que vá acontecer isso.”

Por Michele Oliveira 

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