(antropoLÓGICAS, 13/04/2020 – acesse no site de origem)
“Esse confinamento vem deixando-o ainda mais nervoso”, me contou V., estudante universitária de 26 anos, moradora de uma cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro, em um e-mail que encontrei, inesperadamente, em minha caixa de correio eletrônico, por volta do final de março de 2020. “E ele não tem deixado eu fazer home-office nos bicos que tenho para ganhar alguma coisa. Chegou a ponto de ele desconectar a internet e ameaçar quebrar meu computador e meu celular”.
Variações dessa frase dão início a diversos relatos de mulheres que, assim como V., procuraram-me recentemente pela internet para desabafar ou buscar ajuda para situações de problemáticas vivenciadas durante o período do isolamento social, medida tomada por autoridades políticas de diferentes estados e cidades brasileiros como forma de combate ao avanço da epidemia do novo coronavírus, doença respiratória que assola o mundo de forma fugaz e letal.
Abordagens a partir de perfis em redes sociais não configura nenhuma surpresa para mim ou minhas colegas que compõem certa rede informal de profissionais que atuam, direta ou indiretamente, no campo da violência de gênero, entretanto, o teor de falas e narrativas recentes passou a ganhar contornos atravessados pelo evento crítico da pandemia de Covid -19 (1).
Nas últimas semanas, em meio a uma infinidade de notícias e informações acerca dos impactos da nova doença, é possível encontrar uma série de reportagens preocupadas com o aumento de denúncias envolvendo situações de violência contra mulheres, em especial, em sua faceta doméstica e familiar. Autoridades e especialistas mundiais, visando garantir certa integridade social, são enfáticos na orientação para que todos fiquem em casa. Dentro de seus lares, os sujeitos atuam como agentes que freiam o ritmo acelerado de contágio do vírus. No entanto, para mulheres que vivem em relações violentas, o confinamento pode colocar em risco seu próprio bem-estar físico e emocional.
Em reportagens e números advindos da China, da França, do Reino Unido e dos Estados Unidos, diagnósticos de profissionais, ativistas e pesquisadores costumam apontar para o período de medo, mudanças e instabilidade deste evento crítico originado pela pandemia como um fator desencadeador de ansiedade e tensão para conflitos domésticos, alguns dos quais se transformam em crimes.
“O lar não é um espaço seguro para mulheres e meninas”, disse Ana Güezmes, representante da ONU Mulheres em Bogotá, ao comentar os efeitos da pandemia em seu país. Ana salientou, também, que a violência contra mulheres, assim como o novo coronavírus, constitui uma pandemia amplamente letal e mundialmente esparramada, ainda que “mais silenciosa e com altos níveis de impunidade” (2).
No Brasil, em meio à quarentena, foi noticiado um aumento de 9% de denúncias de violência doméstica e familiar, levando inclusive a ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, a anunciar o lançamento de um aplicativo para denúncias de violações de direitos humanos: “dessa forma, a pessoa, mesmo dentro de casa, pode ir para um cantinho, para um quarto ou banheiro e, mesmo estando sob o mesmo teto que o agressor, fazer a denúncia” (3).
A iniciativa do Governo Federal não foi a única a recorrer às tecnologias digitais como forma de atuar no combate à violência doméstica e familiar contra mulheres. No estado de São Paulo, por exemplo, o sistema de justiça optou por medidas que incluem interações tecnologicamente mediadas como soluções momentâneas a paralisação de atendimentos face a face.
Em pouco tempo, a Polícia Civil paulista passou a permitir a realização de Boletins de Ocorrência eletrônicos e anunciou a possibilidade de realização de intimações e deferimentos de medidas protetivas de urgência através do aplicativo “WhatsApp”. Já o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) lançou o projeto “Carta de Mulheres”, material que reúne informações acerca da rede de atendimento a mulheres em situação de violência.
Concomitantemente a deliberações institucionais, foram organizadas redes emergenciais de resposta rápida reunindo profissionais do direito, da psicologia e da assistência social bem como ativistas feministas. Como pesquisadora, passei a fazer parte como voluntária de uma dessas iniciativas, organizando e analisando os relatos que vêm sendo recebidos, profundamente marcados pelo aumento de conflitos atravessados pelo confinamento. Na rede da qual faço parte, mulheres são atendidas por meio de aplicativos de comunicação pela internet, também pelo “WhatsApp” (4).
Em meio a várias iniciativas emergenciais, as tecnologias digitais, em especial a tríade tecnológica formada pelos smartphones, as redes sociais e o acesso móvel à internet, tem funcionado como importantes aliadas na manutenção de atendimentos, serviços e apoios para mulheres em situação de violência. Altamente popular, o “zap” apresenta vantagem econômica na realização de ligações telefônicas, permite comunicações por meio de áudios e imagens, estabelecendo-se como uma ferramenta comunicacional fundamental no país (4).
É importante ressaltar, também, que a tríade tecnológica smartphone-internet-redes sociais costuma extrapolar os limites das tecnologias comunicacionais. Para além de sua função de dispositivo “conectável”, nele também são armazenadas imagens, músicas, anotações. O celular passou a ser agenda, diário, espelho, relógio, álbum de recordações, material escolar, e mesmo, como pude vivenciar durante a condução de minha pesquisa de doutorado (Lins, 2019), uma extensão de seus próprios corpos. Não à toa, danos ao aparelho são relativamente comuns em relatos de violência doméstica, sendo vivenciados por essas mulheres de forma emocionalmente dolorosa e sofrida. V. chegou me confessar, “se ele quebrar meu celular, vai ser pior do que bater em mim”.
“Ele quebrou meu telefone” ou “ele vigia tudo o que faço” permeava as falas de V., bem como de outras mulheres que procuraram a mim, a outras mulheres da rede e à iniciativa de atendimento online. Aparelhos celulares quebrados ou escondidos bem como vigilância ou impedimento do uso de redes sociais na internet são queixas comuns no período do isolamento devido à pandemia de Covid -19, evidenciando o controle da comunicação como forma de violência e a tecnologia como gatilho, motivo e meio de conflitos.
Para além do controle sobre o uso das tecnologias comunicacionais, é importante lembrar que questões como qualidade de conexão e aparelhos bem como letramento digital são grandes obstáculos no acesso das mulheres brasileiras à rede. Numericamente, a maior parte dos brasileiros tem acesso à rede via smartphones simples e baratos, planos de dados limitados e com sinais ruins ou instáveis (6). Internet, smartphones e redes sociais são serviços de consumo e não se configuram como direitos.
Sendo assim, a tecnologia reveste-se de ambivalência em limites e possibilidades. Se por um lado, permite iniciativas e alternativas frente a limitações trazidas pelos afastamentos sociais, por outro, reflete desigualdades estruturais e pode dar vazão a novas formas de violências contra mulheres.
Por Beatriz Accioly Lins. Doutora em Antropologia Social. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Sobre os Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS/USP). Contato: [email protected]