Plataformas digitais intensificam o debate, propagam conhecimento sobre os direitos das mulheres e oferecem acolhimento e auxílio gratuito às vítimas
(Olhar Digital, 26/07/2019 – acesse no site de origem)
A internet criou diversos espaços de interação social. Por aproximarem desconhecidos e permitirem o anonimato, entretanto, eles potencializam o assédio virtual, principalmente contra as mulheres. Para combatê-lo, plataformas feministas e empresas têm lançado serviços que priorizam a segurança do público feminino.
Redes, organizações e grupos de defesa da segurança das mulheres — e dos direitos humanos no geral — encontraram no ambiente digital abertura para estimular o avanço da legislação brasileira e amplificar a luta por suas causas. Eles utilizam a internet para estimular o debate e propagar o conhecimento sobre o assunto, bem como sobre os direitos das mulheres, além de acolher e auxiliar gratuitamente as vítimas desses crimes.
Números de um relatório divulgado pelo Instituto Avon em 2018 mostram como a internet intensificou o debate sobre a violência contra a mulher. A pesquisa descobriu que, somente no ano passado, o tema foi o 26º assunto mais discutido nas redes sociais. Segundo o estudo, o ativismo de mulheres no meio digital se fortaleceu: cresceu 500% entre 2015 e 2017.
Além do engajamento de redes e grupos ativistas, mulheres usam o espaço virtual para compartilhar suas experiências, fazer denúncias, e procurar apoio e conforto. Entre os motivos de desabafo, a violência física é a mais expressiva (23%). O assédio moral é o segundo item com mais casos (aparece 22% das vezes), seguido de perto pelo assédio sexual, com 20%.
Isabela Guimarães, especialista em direito virtual e co-fundadora da Rede Feminista de Juristas, explica que, em casos de assédio virtual, a primeira atitude da vítima deve ser procurar uma assessoria jurídica. Para ela, o ativismo em plataformas digitais é importante para democratizar o acesso do público feminino a apoio legal e conhecimento sobre o assédio online.
Vários grupos de advogadas oferecem auxílio voluntário a mulheres vítimas de violência de gênero. Entre eles estão a Rede Feminista de Juristas, a Mapa do Acolhimento e a TamoJuntas: todas elas incentivam o acesso à Justiça ao conectar mulheres e advogadas feministas. “Acho importante que elas saibam que há meios [jurídicos] que elas podem procurar. Com isso, elas podem fazer valer seu direito e buscar soluções”, complementa Cristina Sleiman, advogada especialista em direito virtual.
Outras plataformas produzem conteúdo especializado e conhecimento científico sobre o tema. Há, ainda, as que fazem campanhas, pesquisas e ações para conscientizar sobre a violência — virtual e presencial — contra a mulher, reduzir as ocorrências, orientar e apoiar as vítimas. As ONGs Think Olga e SaferNet e os institutos Gênero e Número e Patrícia Galvão se destacam na difusão dessas informações.
O avanço na legislação brasileira
Estimular a discussão sobre os riscos para a mulher nas redes fez o assunto chegar ao âmbito legal e pressionou a Justiça a criminalizar delitos digitais e proteger a vítima. “Conforme [o assédio online] se potencializou, a legislação foi alterada e hoje existem remédios jurídicos para buscar soluções. É essencial, entretanto, que a sociedade se apodere desse conhecimento”, observa Cristina.
Os principais assédios virtuais são constrangimentos moral e psicológico, exposição não consentida de imagens e vídeos íntimos, estupro virtual (conceito já reconhecido pelo judiciário), stalking (perseguição obsessiva) e sextortion (ameaça ou a chantagem mediante materiais ou atos sexuais), assédio sexual em redes sociais e golpes. Atualmente, leis como o Marco Civil da Internet, Maria da Penha e de importunação e contravenção penais oferecem bases jurídicas para que o autor de um crime online seja punido.
No ano passado, a Lei Maria da Penha foi alterada para categorizar o vazamento não consentido de imagens ou vídeos íntimos — um tipo de assédio virtual bastante recorrente — como violência moral e psicológica. Em 2017, o Código Penal também foi alterado para tipificar a lei de importunação sexual. Além da divulgação não permitida de conteúdo sexual, casos de stalking também podem ser considerados crimes com base na norma.
Isabela explica que o Marco Civil obriga, por meio de ordem judicial, as empresas a fornecerem informações sobre usuários que cometem assédio virtual. Assim, redes sociais e outros sites têm obrigação de armazenar por no mínimo seis meses todos os registros de navegação na plataforma. “Se você receber uma mensagem no Facebook que a violente e, logo depois, o perfil for apagado, o Facebook tem a obrigação de saber quem é aquele usuário”, exemplifica.
Depois que a empresa identifica o suposto agressor, as companhias de telefonia e fornecimento de internet são obrigadas, também por meio de processo criminal, a entregar à Justiça os dados cadastrais do cliente. “As vítimas têm de saber que podem encontrar o agressor a partir dessa engenharia reversa”, enfatiza Isabela.
Além disso, o Marco Civil permitiu avanços quanto ao vazamento de fotos e vídeos íntimos. Com base nele, sites hospedados no Brasil são obrigados a retirar imediatamente imagens íntimas não consentidas a partir de um aviso da vítima ou de seu representante. Para isso, não é necessária uma ordem judicial. “Se a plataforma não fizer isso, ela passa a ser responsável pela divulgação da imagem. Ou seja, a vítima pode processar, além do agressor, a plataforma por danos morais.”
Outro caminho que a vítima pode seguir é propor uma ação indenizatória contra o agressor. “No geral, esse é o caminho que tem sido seguido”, acrescenta Isabela. Cristina, por sua vez, lembra que, acima de tudo, é preciso “atuar no aspecto cultural”. “Proteger não impede que esses incidentes aconteçam. Para isso, a gente precisa mesmo de uma forte campanha cultural”, conclui.
As empresas buscam melhorar a segurança das mulheres
Aplicativos e empresas de serviços digitais têm buscado participar de iniciativas para reduzir os riscos para o público feminino nas plataformas online. Para isso, elas se associam a redes ativistas pelo direito da mulher — como algumas das mencionadas nesta reportagem.
Um exemplo é a Uber. A companhia anunciou, em novembro passado, que vai investir R$ 1,55 milhão até 2020 em projetos desenvolvidos em parceria com dez entidades de combate à violência contra a mulher. São elas: Associação Mulheres pela Paz, AzMina, Rede Feminista de Juristas, Força Meninas, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Igarapé, Instituto Patrícia Galvão, Instituto Promundo, Plan International Brasil e Instituto Maria da Penha.
A 99 é outra que caminha para melhorar a segurança do público feminino. Para acolher passageiras que passaram por agressões durante viagens, a empresa se uniu à Think Eva e criou um protocolo de atendimento humanizado para “suporte, resolução e acompanhamento a eventuais vítimas de assédio, preconceito e qualquer forma de discriminação”.
O Facebook, por sua vez, lançou, com a Think Olga, a iniciativa Conexões Que Salvam. O projeto pretende conscientizar sobre o assédio virtual contra a mulher ao promover a propagação de informações sobre segurança online. O objetivo é transmitir conhecimento e recursos e conectar vítimas a quem quer oferecer apoio. Na página da ação, há explicações sobre o que é violência online, como denunciar, onde procurar apoio e dicas de como se proteger.
Além disso, algumas companhias se voltam exclusivamente para o público feminino com o objetivo de melhorar a segurança delas. É o caso da Venuxx, aplicativo de transporte privado que conecta apenas mulheres, de motoristas a passageiras. Desde que começou as operações, em 2013, a empresa nunca recebeu denúncias de assédio, outras violências contra a mulher e falta de segurança durante as corridas. “Até porque quando você coloca duas mulheres em um veículo, você começa a reduzir isso”, afirma Gabrielle Jaquier, chefe de operações (COO) da plataforma.
O maior desafio da empresa em relação à experiência das passageiras é atender à demanda por corridas. Por isso, a companhia trabalha, preferencialmente, com pessoas mais vulneráveis a riscos de segurança, como crianças, adolescentes, mães e idosas. “Hoje, somente de 15% a 20% de quem dirige em aplicativos de mobilidade são mulheres. E 60% das passageiras querem e optam por andar com essas condutoras. Então, nossa demanda é muito maior do que a oferta, porque há muito mais mulheres querendo usar o serviço do que motoristas disponíveis para atendê-las”, explica.
Além de tentar maximizar a segurança das passageiras, a Venuxx não transporta homens para zelar também pelas pilotas. Outra proposta da empresa é empoderar financeiramente as mulheres. “A gente traz oportunidade de renda, independência financeira e representatividade da mulher. Criamos oportunidade para elas em um mercado intitulado como masculino há muitos anos”, observa.
Com isso em mente, apenas R$ 1 do valor de cada viagem feita pela plataforma vai para a Venuxx. O valor é fixo, não variável de acordo com o custo da corrida. A intenção da empresa com a taxa mínima é possibilitar que as motoristas tenham um bom faturamento mensal mesmo quando trabalham menos horas por dia.
A plataforma tem mais de 6 mil motoristas cadastradas, oferece corridas em São Paulo, Belo Horizonte (MG) e Porto Alegre (RS) e planeja se expandir para mais quatro cidades até o fim do ano. “A gente vê a inovação como mais do que um investimento de tecnologia. Para nós, ela é um caminho para gerar mais valor para o público.”
Esta é a última de uma série de reportagens do Olhar Digital para mostrar que a violência contra a mulher é sistêmica no ambiente virtual. Crimes como assédio, perseguição (stalking), ameaças, chantagem e vazamento de fotos íntimas fazem parte do lado sombrio das redes para elas. Acompanhe no site os outros episódios sobre o assunto publicados no dia 24 e no dia 25.
Por Beatriz Trevisan | Editado por Roseli Andrion.