Estupro virtual, pornografia de revanche, cyberstalking… Os perigos passaram das ruas para a internet em situações que nem a Justiça sabe como resolver
(Cláudia, 25/07/2019 – acesse no site de origem)
Em seu programa na Rádio Cidade, de Costa Rica (MS), Verlinda Robles tocava músicas a pedido dos ouvintes que ligavam para a emissora. A partir de abril de 2016, um homem que se dizia fã da radialista passou a telefonar diariamente. Certa vez, quis falar com a apresentadora. “Eu gosto de você. Sou evangélico e sei que Deus tem um projeto para nós. Você não gosta de mim agora, mas vai gostar”, disse ele.
Apesar das negativas da locutora, o homem mandava presentes, mensagens de WhatsApp, recados pelo Facebook. “No começo, achei que ele era fanático por rádio, mas aquela situação foi tomando um rumo diferente do que eu imaginava. As ligações, que variavam de dez a 20 por dia, aconteciam até no meio da noite. Eu bloqueava o número, ele trocava de chip. Isso se repetiu 12 vezes.”
Como o município tem menos de 20 mil habitantes, não demorou para que o perseguidor descobrisse também os telefones dos amigos de Verlinda. Procurava-os com a mesma frequência querendo que dessem recados ou entregassem presentes.
“As pessoas eram rudes, mas ele não parava. Fiquei com medo. Ele conseguiu o contato de umas 20 pessoas próximas a mim. Até hoje me sinto constrangida.” Um ano após o início das ligações, o homem foi até o trabalho de Verlinda e uma colega pediu que se retirasse.
Com a constante sensação de que estava sendo observada, a radialista tinha receio de que o perseguidor a abordasse a qualquer momento. Mudou-se para Nova Andradina (MS) e trocou de emprego. Nem assim ele foi embora. Chegou a ponto de o gerente da rádio chamar a atenção de Verlinda, recomendando que ela desse seu número pessoal para o fã que a procurava sem parar. “Fiquei envergonhada, ele estava me prejudicando profissionalmente.”
A gota d’água veio algumas semanas depois, quando descobriu que sua conta de celular estava indo para o endereço do homem. Reuniu prints das telas do celular e do computador com os recados enviados para ela e para seus amigos, juntou arquivos de áudio que chegavam pelo WhatsApp e foi a uma delegacia fazer o boletim de ocorrência.
No início deste ano, obteve uma medida cautelar que determinou que seu perseguidor mantivesse distância de, pelo menos, 200 metros dela, e proibia qualquer contato por correspondência ou telefone. Só assim Verlinda se sentiu um pouco mais segura para retornar a Costa Rica e ao trabalho na Rádio Cidade.
Os efeitos, porém, permanecem. “Se, mesmo depois de três anos de negativas, ele continua no meu pé, deve ser perigoso. Temo que, sendo deficiente visual, tenha ajuda de outras pessoas.” Mãe de dois meninos que fazem faculdade em outro estado, Verlinda desenvolveu pavor de atender o telefone e fobia de andar sozinha. “Morro de medo de que ele mande alguém me pegar. A cidade é pequena, ele sabe meu trajeto, meu horário de trabalho.”
Verlinda foi vítima de stalking, termo em inglês que significa perseguição. A prática ainda não é tipificada como crime no Brasil, e inexistem estatísticas que informem a dimensão do problema por aqui. No entanto, levantamentos realizados nos Estados Unidos, onde stalking é crime, indicam que 7,5 milhões de homens e mulheres são perseguidos por ano no país.
Entre as mulheres, 61% de seus perseguidores são atuais ou antigos parceiros íntimos, segundo dados reunidos entre 2009 e 2011 no Stalking Resource Center (Centro de Pesquisa sobre Perseguição). E 76% das vítimas de feminicídios cometidos por conhecidos foram antes perseguidas pelos algozes. “O caminho da violência doméstica e do feminicídio começa na perseguição”, afirma a senadora Rose de Freitas (Podemos-ES), autora do projeto de lei que pretende alterar o artigo 65 da Lei de Contravenções Penais e aumentar a pena diante desse tipo de assédio para de dois a três anos.
Hoje, a punição é de 15 dias a dois meses de prisão, normalmente convertidos em multa. O projeto também visa à mudança da redação do artigo, incluindo que seja também considerada como perturbação aquela que se dá direta ou indiretamente e com o uso de quaisquer meios – englobando as realizadas pela internet, via aplicativo de mensagens ou outras redes sociais.
Gisele Truzzi, advogada especialista em direito digital, de São Paulo, explica que, como o cyberstalking não possui legislação específica, a punição depende do grau de violência no conteúdo das mensagens. Se houver clara ameaça ou difamação, é possível conseguir pena de detenção.
Mas, se consistir em importunação, como no caso de Verlinda, é provável que o perseguidor pague uma multa apenas. “Uma ação dessas pode acabar com a saúde mental da vítima. Ela pode desenvolver síndrome do pânico e depressão”, diz. “E, não raro, o indivíduo paga e continua a fazer a mesma coisa.”
Tramita na Casa Legislativa um segundo projeto de lei, de autoria da senadora Leila Barros (PSB-DF), que pretende tipificar o stalking como crime no Código Penal dentro e fora da internet. “Por causa do uso das redes sociais, as perseguições cresceram muito, e algumas têm desdobramentos mais sérios”, justifica. “É uma evolução necessária, pois as vítimas se sentem desprotegidas.”
À falta de recurso legislativo soma-se um frequente despreparo das autoridades policiais para lidar com os casos. “As delegacias comuns sugerem as de Repressão aos Crimes de Informática, que, geralmente, afirmam só registrar crimes eletrônicos que envolvam golpes financeiros. Na realidade, qualquer uma tem obrigação de registrar esse B.O., porque é um crime comum realizado por vias eletrônicas. Entretanto, a vítima, sem saber disso, fica perdida”, diz Gisele.
Esses entraves colaboram para que práticas violentas contra mulheres na internet, como cyberstalking, não sejam notificadas às autoridades. Apesar do espaço cada vez maior que a internet ocupa na nossa vida – segundo o IBGE, em 2016, 116 milhões de pessoas acessaram a rede, e, destas, 94,2% enviaram ou receberam mensagens de texto, voz ou usaram mídias sociais –, ainda impera no senso comum a ideia de que ataques realizados virtualmente configuram um crime menor se comparados a homicídios ou latrocínios, por exemplo.
“Não há uma fronteira entre o real e o virtual. A gente está o tempo todo transitando entre os dois mundos. Não dá para hierarquizar a nocividade dessas situações”, afirma a antropóloga Beatriz Accioly, pesquisadora especializada em estudos de gênero, violência contra mulheres e internet.
Pornografia de vingança
Configurada quando há o compartilhamento de imagens íntimas sem o consentimento da vítima, a pornografia de vingança é outro crime virtual que afeta principalmente as mulheres. Diferentemente do cyberstalking, entretanto, essa prática é tipificada na legislação brasileira desde o ano passado. As penas podem variar de seis meses a cinco anos.
Um dos casos que motivaram a inclusão desse crime no Código Penal foi o da jornalista Rose Leonel. Ela teve suas fotos íntimas compartilhadas entre 2006 e 2010 por um ex-namorado que não aceitou o fim do relacionamento. “Ele falou que ia me destruir se eu o deixasse”, lembra. O homem disparou as imagens para 15 mil endereços de e-mail, todos de Maringá (PR), cidade da vítima.
Distribuía também informações de contato dela e do filho, então com 12 anos, e insinuava nas mensagens que ela era prostituta. Rose perdeu o emprego e ouviu comentários maldosos. O filho entrou em brigas na escola defendendo a mãe e se mudou para a Europa, onde o pai morava. A caçula teve que trocar de colégio várias vezes. “Destruiu minha reputação.”
A inexistência de leis e a falta de conhecimento sobre esse tipo de crime foram obstáculos na busca por Justiça. O primeiro advogado sugeriu que ela abrisse uma ação no Tribunal de Pequenas Causas, o que resultou no pagamento de uma multa de 3 mil reais. A importunação continuou. “Ninguém queria pegar meu caso em Maringá, pois ele era um homem rico, com status.”
Anos mais tarde, em 2013, em São Paulo, com um perito digital, Rose conseguiu que o ex recebesse uma pena mais dura. Ele foi condenado a pagar multa de 30 mil reais e teve a pena de quase dois anos de reclusão convertida em trabalho comunitário. A vítima até hoje não recebeu o dinheiro.
Após a decisão, ela fundou a ONG Marias da Internet, que tem como objetivo orientar jurídica e psicologicamente outras vítimas de compartilhamentos de imagens íntimas sem autorização. Seu nome batizou o projeto de autoria do deputado João Arruda (MDB-PR) que visava à criminalização dessa prática e hoje é lei. “Esse é um crime de gênero.
Divulgar as fotos de um homem se transforma em propaganda positiva para ele. A mulher tem a vida interrompida”, afirma Rose, que estudou direito para encabeçar a luta.
Segundo a SaferNet Brasil, associação sem fins lucrativos que oferece orientação desde a denúncia, de 2017 a 2018, aumentou em 131,89% o número de vítimas procurando o canal após terem imagens íntimas vazadas. A psicóloga Juliana Cunha, diretora da associação, afirma que, em um primeiro momento, as mulheres se culpam por terem se envolvido com o agressor. “Elas não denunciam por medo de serem julgadas”, afirma.
Além disso, vivem com um fantasma, pois não conseguem ter controle total sobre a replicação do conteúdo. “Se estão em um bar ou uma festa e alguém olha para elas, acham que é porque a pessoa teve acesso às fotos íntimas. Elas não se libertam.” Há quem troque de cidade, de trabalho, mude o visual. Em situações extremas, as vítimas se suicidam.
Ainda que exista a tipificação no Código Penal, o sistema jurídico como um todo acaba vitimizando a mulher uma segunda vez. “Durante a audiência, o questionamento a induz a pensar que é, de alguma forma, responsável”, explica a defensora pública do Rio de Janeiro Flávia Brasil Barbosa do Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher. Perguntam, por exemplo, se ela não sabia do risco que corria ao ter as fotos compartilhadas. “Embora a legislação avance, a Justiça é ainda muito influenciada pelo sistema patriarcal.”
A própria nomenclatura pornografia de vingança apresenta problemas. Beatriz Accioly, que realizou pesquisa com vítimas do crime, relata que, muitas vezes, o homem compartilha as imagens não por retaliação, mas para se gabar de ter saído com uma mulher, por exemplo. “Além disso, chamar de pornografia moraliza a nudez”, completa.
Estupro virtual
Em agosto de 2017, foi determinada, em Teresina, a primeira prisão por estupro virtual no país. O acusado, ex-namorado da vítima, fez imagens dela nua sem consentimento e, por meio de um perfil falso no Facebook, a chantageou. Se ela não enviasse retratos se masturbando ou introduzindo objetos em sua vagina, ele compartilharia as imagens entre familiares e amigos da vítima. O decreto da prisão por estupro virtual só foi possível devido a uma mudança no entendimento sobre o que configura crime de estupro.
Até 2009, era necessário que houvesse “conjunção carnal”, ou seja, contato físico direto. Agora, o Código Penal incluiu em sua redação o ato libidinoso englobando qualquer situação de constrangimento sexual. Segundo a SaferNet Brasil, 35% dos casos reportados ao canal continham relatos semelhantes ao contado aqui, conhecidos também como “sextorsão”, que junta as palavras sexo e extorsão.
Apesar dessa decisão, o estupro virtual ainda não foi absorvido pela legislação, e o mais comum é que esses casos sejam enquadrados como crimes de extorsão. Segundo Gisele Truzzi, há um forte embate em torno desse tema, pois, para muitos juristas, uma vez que a ameaça não é presencial, a vítima teria o poder de desligar a câmera ou tomar outras medidas para não atender às chantagens. “Muitos entendem que a aceitação do estupro virtual minimizaria o estupro real, como se ambos fossem dispostos em uma mesma categoria”, explica.
O que Fazer?
Especialistas sugerem que as vítimas de crimes virtuais registrem a ocorrência nas Delegacias de Defesa da Mulher de sua cidade, onde o tratamento costuma ser mais humanizado e as autoridades são instruídas para garantir melhor acolhimento. Também podem procurar entidades ligadas à Defensoria Pública ou ao Ministério Público, que orientam, além dos Centros de Referência de Atendimento à Mulher. É essencial que reúnam o maior número de provas contra seus agressores, como prints da tela com as imagens, ameaças ou importunações.
Manter as mensagens nos aplicativos – seja no celular, seja no computador – e enviá-las por e-mail para assegurar um backup são medidas fundamentais. “Vá a um cartório e faça uma ata notarial desses prints. Isso garante outro status ao documento”, alerta a defensora Flávia. Outro passo é falar com amigos e familiares que tenham acompanhado tudo e possam ser testemunhas em caso de processo.
Juliana Cunha relembra também a importância do Marco Civil da Internet, que responsabiliza subsidiariamente plataformas provedoras – como o Facebook ou o Google – por conteúdos produzidos por terceiros que violem a intimidade de alguém. Uma vez notificadas, as ferramentas têm até 24 horas para tirar o conteúdo do ar. “O Facebook desenvolveu códigos que impedem que um material retirado retorne à plataforma. Se alguém tenta fazer o upload da imagem novamente, o sistema impossibilita a postagem”, explica.
As vítimas também podem entrar em contato diretamente com o Google para desindexar material ofensivo, ou seja, impedir que apareça no buscador sempre que seu nome for digitado, por exemplo. “Não precisa de advogado, mandado ou notificação”, acrescenta Juliana.
A longo prazo, no entanto, é necessário pensar em soluções que vão além da penalização dos agressores e perseguidores. “O direito penal é a última instância da sociedade. Ele entra em cena quando todo o resto já falhou”, afirma Beatriz Accioly.
Maíra Zapater, especialista em direito penal e processual penal, concorda com a antropóloga e afirma existir uma ilusão de que as normas penais teriam o poder de coibir práticas criminosas. “Devemos, antes, refletir sobre a educação de gênero e sexual, pensando em campanhas públicas de conscientização. Isso tem mais poder de desconstrução de preconceitos do que a questão penal.”
Por Bruna Carolina Carvalho