“A cada 19 minutos nasce o produto de um estupro no País”, diz médica do Hospital das Clínicas

07 de julho, 2019

A ginecologista Albertina Duarte: “A gente vive um momento assustador de retrocesso. Eu me sinto em 1975, quando se celebrou pela primeira vez o Dia Internacional da Mulher. Só que era uma época difícil, de construção, de luta. Agora, é de desconstrução, desmoronamento” (Foto: Reprodução/Instagram)

(Universa, 07/07/2019 – acesse no site de origem)

Em 42 anos de profissão, a ginecologista Albertina Duarte Takiuti, 69, coordenadora do Programa de Saúde do Adolescente do estado de São Paulo e chefe do ambulatório de Ginecologia da Adolescência do HC (Hospital das Clínicas), foi muito além da investigação minuciosa da fisiologia feminina.

Ela se dedica incansavelmente ao atendimento de mulheres sequeladas por conta de preconceito, machismo e violência. A solução para boa parte dessas mazelas estaria na conquista de autonomia para assumir as rédeas do próprio destino. Ocorre que isso não depende apenas delas. “No Brasil, 550 mil adolescentes por ano ficam grávidas, sem a menor perspectiva de acolhimento, de assistência à saúde, à educação, à informação. São, então, 1.100 pessoas no caminho da desigualdade”, diz a ginecologista. “Metade dessas meninas volta a engravidar em dois anos.”

Um relatório divulgado em junho pela Organização Universal de Direitos Humanos da ONU revelou que menos da metade dos hospitais listados no Ministério da Saúde e no
CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde) como locais que fazem aborto nos três casos previstos por lei realiza de fato o procedimento. De 176 instituições cadastradas, apenas 76 (43%) confirmam a oferta do serviço quando contatadas pelo telefone.

“A gente vive um momento assustador de retrocesso. Eu me sinto como se estivesse em 1975, quando se celebrou pela primeira vez o Dia Internacional da Mulher (8 de março). Era uma época de muita repressão, a gente lutou, levantou bandeiras, deu sangue para desenhar um modelo de saúde que atendesse da mesma maneira brancos, negros, índios, refugiados, pessoas de todas as orientações sexuais. Criamos o SUS a duras penas. Eram os alicerces para a construção de um mundo livre de preconceitos, perseguições, violência. Agora, a gente assiste à ameaça de desconstrução disso tudo“, lastima Albertina.

Com a experiência de quem atende cerca de 300 mulheres por mês, das populações mais carentes às mais abastadas, ela conversou com o blog sobre estupro, gravidez indesejada, infidelidade e relacionamento homoafetivo.

Blog — O Brasil vive um momento nebuloso. O governo mostra-se despreparado para enfrentar desafios, a economia está em depressão e a crise política agrava a situação. Há 13 milhões de desempregados. Até que ponto o desânimo do povo, ou o desespero, podem levar a comportamentos sexuais destrutivos?

A desesperança nunca é saudável. E não se tratam de 100, 200 pessoas. É um enorme contingente da população desesperançoso. A insatisfação e a sensação de fracasso
levam à busca de uma saída. A bebida e a droga aparecem como alternativas acessíveis para “animar”, ou “esquecer”. Com a falta de juízo crítico, seguem-se o descontrole, a impotência, a raiva. Nessas circunstâncias, a sexualidade não é vivida com prazer, mas como válvula de escape. E então, a parte mais fraca se vê sujeita a abusos sexuais, violências domésticas, estupros. Isso é muito mais frequente nas classes mais pobres.

Blog – Existe relação entre o ambiente e o evento?

Albertina — Situações sociais trágicas podem levar a comportamentos extremos. Existe uma quantidade enorme de meninas adolescentes que não tem acesso à educação, à saúde, à cultura, que não tem um projeto de futuro. Há um caso que eu não esqueço, de uma menina que engravidou na roda do funk. Ela dizia que não queria ter o filho, foi a mãe que insistiu para ela ter. A mãe é religiosa, contra o aborto, e não admite que foi estupro, sustenta que a filha quis ir ao baile.

Blog — E como essa adolescente falava disso?

Albertina — Quarenta por cento delas acham que tudo bem ter relações no funk. Existem as crecheiras, que cuidam dos filhos dessas adolescentes enquanto elas vão para os bailes. Lá, há uma prática que eles chamam de “táuba”. A adolescente deita em uma superfície lisa, suspensa, e é penetrada por uma fileira de homens. Ou, então, eles deitam lado a lado, e elas fazem cavalinho em um por um. Aí, nascem os filhos da táuba, frutos de um estupro de que ninguém está falando.

Blog – Ao mesmo tempo que elas acham que “tudo bem”, é complicado afirmar que foi consentido.

Albertina — Sim, porque não foi uma decisão, foi uma falta de decisão. Que acolhimento da sociedade tem uma menina que foi estuprada aos 13 anos e engravidou? Ela voltou para a escola? Até os 14 anos, por lei, qualquer relação sexual é considerada estupro presumido. No Brasil, 28 mil garotas por ano engravidam entre 10 e 14 anos; a cada 19 minutos, nasce o produto de um estupro. Então, o estupro coletivo já existe. O estupro social. Resta uma situação de vulnerabilidade.

Blog — Isso inclui o contágio de doenças sexualmente transmissíveis.

Sim, claro. Ainda bem que o abusador em geral é incompetente, não tem prazer na penetração, mas na submissão. Então, a relação se dá muito rapidamente, e não é orgástica.

Blog — Casos de estupro veiculados na mídia são seguidos por relatos em série de violência doméstica.

Albertina — Notícias de estupro sempre vão despertar indignação nas mulheres. E más lembranças. Eu diria que 20% das que viveram isso não contam, mas não esquecem. E há vários tipos de estupro. Pouco se fala do caso em que a mulher se sente obrigada a consentir a relação sexual com o marido.

Blog — Isso não é conversado? Como resolver?

Albertina — Os espaços reservados a essas conversas são cada vez mais restritos e profissionalizados. Se eu estou com um problema, procuro um psiquiatra, um psicólogo, um astrólogo. Se quero manter a relação, procuro uma terapia de casal. Geralmente, o momento em que se diz “eu não aguento mais te ouvir falando dos meus defeitos” acontece próximo à ruptura, quando o casal está para se separar.

Blog — Muitas mulheres se queixam de falta de atenção dos homens, de descompromisso deles com o relacionamento, de inabilidade (inclusive na cama). Por outro lado, nota-se que os casais de mulheres ficaram mais “visíveis”. Homens heterossexuais têm se surpreendido de ver tantas mulheres de mãos dadas nas ruas.

Albertina — As mulheres que antes tinham uma orientação heterossexual e se encontraram em uma relação lésbica afirmam que a companheira dá a elas tudo o que o homem não foi capaz de oferecer. Trata bem, vai buscar no trabalho, se preocupa em saber como ela está.

Blog — A escolha por outra mulher seria, nesse caso, “culpa” do homem?

Albertina — Basicamente, o que a mulher quer é ser desejada. Quando ela sente que a outra pessoa a deseja de um jeito profundo, aí entra a substituição.

Blog — Em caso de existência de um terceiro elemento, quando se fala em “traição”, existe diferença entre a maneira de agir do homem e da mulher?

Albertina — Hoje, eu concordo plenamente com a tese de que o homem trai para ficar no casamento, e a mulher, para sair. Ele busca um aditivo, mas preserva a relação
estável que tem com a família. Então, quando ela o confronta com “provas”, diz que o viu com outra, grita, joga na cara, ele nega sempre. Já a mulher que se apaixona por outro logo se pergunta: “Será que eu termino meu casamento?” Algumas me falam: “Eu contei mesmo que o traí. Queria ver a cara dele!” Eu sempre digo para tomar cuidado com o “sincericídio”.

Blog — A Internet mudou a “qualidade” da traição?

Albertina — No mundo virtual, ela parece mais difusa. Antes, quanto havia uma pessoa física, real, a traída eventualmente ligava para ela e xingava, ameaçava, escandalizava. Com a internet, os códigos, os canais, a imaginação são infinitos. A paciente chega e Paulo Sampaio diz: “Eu descobri com quem ele conversa (nas redes sociais). Mas têm as que eu não descobri!” É como se houvesse uma constelação.

Blog — Qual a principal preocupação de uma mulher traída?

Albertina — Em 42 anos de profissão, eu nunca vi uma paciente interessada em saber se a “outra” é inteligente ou bem sucedida. As perguntas sempre são: “Será que ela é jovem?” “Bonita?” “Boa de cama?”

Blog — E quando o homem fica com outro?

Albertina — Acho que é menos complicado para a mulher. É como se ela não tivesse culpa, o problema é com ele.

Blog — O presidente da República já se revelou homofóbico, fez declarações machistas e misóginas. A comunidade LGBTQI+ e as feministas afirmam que o governo Bolsonaro pode legitimar comportamentos agressivos contra as minorias. Agora, ele pede apoio a parlamentares para a manutenção do decreto que flexibiliza a posse e o o porte de armas. De que maneira isso impacta na segurança das mulheres?

Albertina — Somos hoje o 5º país do mundo em feminicídio. O 1º em assassinatos de transexuais e travestis. O porte de armas supõe o combate à violência com a violência. Eu, particularmente, sou a favor do caminho da paz. Em relação a homofobia, não acho que caiba a um governo censurar ou julgar comportamentos, mas encontrar maneiras de resolver questões básicas de todas as populações. LGBTQI+, mulheres, brancos, negros, índios, refugiados. Eu sou portuguesa, vim para o Brasil quando tinha 10 anos, com minha família, fugindo do governo do (ditador Antônio de Oliveira) Salazar (1938-1974), que achava que mulheres jamais deveriam ter independência profissional. Eu seria uma camponesa, o que não é indigno, mas foi muito melhor ter a chance de descobrir minha verdadeira vocação. E a chance de descobrir eu tive aqui, no Brasil. Como é que eu vou ser a favor agora de fechar as fronteiras aos imigrantes refugiados?

 

Por Paulo Sampaio

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