(Jornal da USP | 10/02/2022 | Por Eva Alterman Blay)
Em 17 de dezembro 2020 o deputado estadual Fernando Cury foi flagrado pelas câmaras da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo apalpando a deputada estadual Isa Penna quando esta se dirigia à mesa do presidente da casa. Isa reagiu imediatamente. Em consequência instalou-se um procedimento investigativo contra o deputado. Depois de muitas tentativas de ignorar a agressão sexual, o citado deputado foi expulso por seu partido (Cidadania). O Ministério Público ofereceu denúncia por importunação sexual, mas curiosamente ele só foi notificado em outubro, dez meses depois da violência, pois: “Por quatro vezes, em maio e junho, o Tribunal de Justiça (TJ) não conseguiu encontrá-lo, embora Cury tivesse participado inclusive de eventos políticos, incluindo um com o governador João Doria (PSDB) no Palácio dos Bandeirantes“. Nos últimos dias, Isa denunciou à Assembleia que está sofrendo ameaças de morte! Passado mais de um ano ele não foi julgado, não perdeu seu mandato e teve apenas uma suspensão de 180 dias.
Esse modo protelatório que ocorre na principal capital do Brasil revela como todas as violências contra a mulher enfrentam obstáculos machistas e misóginos. Não por acaso levou 15 anos para que o assassino de Marcia Barbosa fosse condenado, e isso só ocorreu quando o caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Durante angustiantes 15 anos a família de Marcia procurou a justiça. A jovem, uma estudante afrodescendente, de família modesta, fora convidada a um passeio pelo deputado estadual Aércio Pereira de Lima. Certamente não imaginava que acabaria estrangulada num motel. A imunidade parlamentar, que vigorava à época, protelou o julgamento do assassino e de seus asseclas. Mesmo depois de perder as eleições, passou a ter um cargo político e conseguiu permanecer livre. Os dados do processo revelam vários artifícios da defesa os quais acusavam a vítima de ser prostituta, viciada em drogas, e até mesmo suicida. Como se esses justificassem matar uma mulher. Por outro lado, a defesa do deputado alegava que ele era um “pai de família” que “se deixou levar pelos encantos de uma jovem” e que, em um momento de raiva, ele teria “cometido um erro”. Usava-se o recorrente artifício de julgar e condenar a vítima como culpada. Na cultura brasileira resistem valores e estereótipos conservadores que a priori condenam a mulher.
Marcia Barbosa só teve seus direitos corretamente analisados quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) demonstrou o uso de estereótipos sobre a condição de gênero ocultando o crime. Mostrou como os estereótipos que desqualificam a condição de gênero “distorcem as percepções e levam a decisões baseadas em crenças e mitos preconcebidos, ao invés de fatos” e levam à vitimização dos denunciantes. A justiça chegou muito tarde: Aércio Pereira de Lima já tinha morrido quando condenado.