Apesar de a lei obrigar atendimento integral e imediato a quem sofre estupro, pessoas enfrentam dificuldade para obter tratamento na rede pública. MPF lança campanha para alertar sobre a legislação. Ministério da Saúde atribui falhas a estados e municípios
(Correio Braziliense, 03/12/2018 – acesse no site de origem)
A cada onze minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. A pena para o agressor pode chegar a 30 anos. O tempo de socorro à vítima, a um minuto. Qualquer pessoa que sofre essa agressão tem direito a atendimento emergencial na rede pública de saúde, sem a necessidade de apresentar boletim de ocorrência ou qualquer outro tipo de prova do abuso sofrido. A palavra dela basta. Contudo, mesmo após cinco anos da sanção da Lei do Minuto Seguinte, mulheres ainda enfrentam entraves para conseguir tratamento. A maioria sequer conhece a legislação, o que é agravado pelo preconceito de profissionais de saúde.
Para se ter dimensão da defasagem do socorro, somente 40% das vítimas de estupro foram atendidas no ano passado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), segundo levantamento do Ministério da Saúde, feito a pedido do Correio. Os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação mostram que apenas 24 mil receberam tratamento em algum hospital, no ano passado. Ao todo, 60 mil sofreram essa agressão em 2017, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um aumento de 21% em relação ao ano anterior. O problema é recorrente. Em 2016, dos 49,5 mil estupros, somente 20,2 mil vítimas foram socorridas por uma equipe médica.
Deficiências
O descompasso fez o Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo lançar, na semana passada, uma campanha para alertar mulheres e profissionais de saúde para as diretrizes da lei. A ação do MPF é resultado de um inquérito civil que a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão conduz desde 2016 para investigar as deficiências do atendimento na rede pública de saúde em casos de violência sexual.
O procurador regional substituto dos Direitos do Cidadão, Pedro Antônio de Oliveira Machado, afirma que falta informação. “Esse é um problema tanto para as vítimas, que se encontram em uma situação dramática e acham que só podem recorrer à polícia, quanto em relação aos profissionais do SUS. Ao procurarem unidades públicas de saúde após sofrerem violência sexual, muitas mulheres deixam de receber o tratamento adequado por causa da falta de conhecimento dos profissionais sobre a lei”, destaca.
A professora de direito Soraia Mendes, mestre em ciência política da Universidade de Brasília (UnB) e especialista na defesa da mulher, discorda. Para ela, o que acontece é o desprezo da palavra da vítima. “A questão é a modificação cultural necessária. Impera, sim, a desconfiança em relação à palavra da mulher. O discurso que se tem em relação à mulher é sempre de desconfiança. Isso não tem outro nome: é machismo, e ocorre por conta do patriarcalismo, onde a palavra do homem é confiável, e a da mulher não é”, explica.
Soraia ressalta que o profissional envolvido em omissão pode ser penalizado. “Mas, dificilmente o médico ou o enfermeiro é punido na recusa do atendimento. No caso da interrupção de gravidez após o estupro, o profissional pode alegar objeção de consciência ou motivo religioso. Contudo, se uma mulher contrai uma doença, pode-se pensar em responsabilização.” Ela descarta falta de informação dos funcionários da rede pública. “O Ministério da Saúde faz campanhas regulares para alertar os profissionais”, afirma.
As garantias da lei não se limitam ao diagnóstico e ao tratamento emergencial de lesões causadas pelo agressor. As vítimas devem ter acesso a um atendimento completo, incluindo amparo médico, psicológico e social, administração de medicamentos contra gravidez e doenças sexualmente transmissíveis, coleta de material para a realização do exame de HIV, facilitação do registro da ocorrência e fornecimento de orientações sobre seus direitos legais e os serviços sanitários disponíveis.
A limitação no atendimento médico revela outro problema: o sucateamento do serviço de segurança para o registro dos crimes. A defensora pública federal Rita Cristina de Oliveira acredita que esse entrave desestimule as vítimas a denunciarem e a cobrarem a responsabilização. “Quando se procura o atendimento policial, o que se encontra é a delegacia lotada de outras demandas, policiais sobrecarregados. A mulher sofre uma nova violência por omissão do Estado”, reclama.
Drama sem fim
Um ano após a sanção da lei, a estudante universitária Samara (nome fictício), 24 anos, sofreu um estupro em Ceilândia, a 30km do Plano Piloto. Ela estava a caminho do colégio, no início da manhã, quando foi abordada. Aquele 22 de setembro jamais saiu da sua memória. “É um trauma impossível de ser superado. As dificuldades para ser atendida, registrar a ocorrência aumentam a dor e tornam a história um drama sem fim”, conta.
Naquele dia, ela foi para casa, tomou banho e horas depois contou à mãe. “Logo, procuramos o hospital e a polícia. Em vão. Um pedia comprovantes do outro para registrar o caso”, lembra. A jovem acabou sendo atendida no Hospital Regional de Ceilândia. Tomou remédios, fez exames e acompanhamento psicológico. “Por sorte, não carrego doenças ou engravidei do meu algoz”, conclui.
“Impera a desconfiança em relação à palavra da mulher. Isso não tem outro nome: é machismo”
Soraia Mendes, professora da UnB