Uma polêmica absolvição por estupro no Rio Grande do Sul abriu margem para um importante debate: o quanto vulnerável precisa estar a vítima para que não tenha condições de consentir um ato sexual? Com base na lei, a advogada Isabela Guimarães Del Monde responde
(MarieClaire, 07/08/2019 – acesse no site de origem)
Os desembargadores da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) absolveram um homem pelo crime de estupro alegando que a vítima em questão teria bebido demais “por sua livre e espontânea vontade”. Parte do texto da decisão diz exatamente assim: “Ora se a ofendida bebeu por conta própria, dentro de seu livre arbítrio, não pode ela ser colocada na posição de vítima de abuso sexual pelo simples fato de ter bebido”.
A absolvição foi contestada pelo Ministério Público, que afirma que foram desconsiderados depoimentos de testemunhas que confirmam que a vítima estava sob forte efeito alcoólico e, por isso, vulnerável o bastante para sequer ter lúcida consciência de seus atos. “A embriaguez dela era tamanha que a mulher não tinha como oferecer resistência ou condições de consentir ou não consentir com qualquer tipo de ato que viesse ser praticado com ela”, diz Tania Bitencourt, promotora do caso.
O parecer dos desembargadores abriu margem para um importante debate: o quanto vulnerável precisa estar a vítima para que não tenha condições de consentir um ato sexual? E mais: como a lei brasileira entende – e pune – estupro de vulnerável? Por aqui, ouvimos Isabela Guimarães Del Monde, advogada e cofundadora da Rede Feminista de Juristas, para esclarecer as principais perguntas em relação ao assunto.
Marie Claire. Desde quando a legislação brasileira considera o estupro de vulnerável?
Isabela Guimarães. Desde 2009.
MC. O que é entendido como estupro de vulnerável?
IG. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Incorre no mesmo crime quem pratica essas ações com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
MC. A punição é agravada para estupro de vulnerável?
IG. Sim, a pena é maior do que para o estupro “comum”, que tem pena de reclusão de 6 a 10 anos. A pena para o estupro de vulnerável é de 8 a 15 anos de reclusão.
MC. É preciso haver conjunção carnal para configurar estupro?
IG. Não. Como a própria lei diz, é preciso haver conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso.
MC. O que a lei vê como “qualquer ato libidinoso”?
IG. A lei é ampla nesse sentido e não traz esse detalhamento. O que entende-se por ato libidinoso na esfera do crime de estupro é forçar prática de sexo oral, anal, masturbação em si ou terceiros, e desde que haja violência ou grave ameaça. Para práticas de atos libidinosos sem violência ou grave ameaça no seu cometimento (como a ejaculação no metrô) foi criado o crime importunação sexual em 2018, uma vez que os juízes e desembargadores não condenavam, por estupro (devido à alta pena) um caso de beijo forçado ou de ejaculação, embora haja correntes no direito que ainda defendem que práticas assim podem ser sim consideradas de estupro de acordo com a redação do crime desde 2009.
MC. Estar bêbada é um caso de vulnerabilidade?
IG. Há entendimentos diversos sob os olhos da lei. Há decisões judiciais, como a decisão em primeira instância desse caso [que julgou o acusado culpado e o condenou a 10 anos de detenção], que claramente define que sim, estar bêbada é estar vulnerável. A prática jurídica feminista segue justamente essa linha. Se, afinal, estar bêbado é condição de proibição para dirigir um carro, como podemos continuar defendendo que uma pessoa alcoolizada tem condições para consentir intimamente com a prática sexual? Porém, como vemos na decisão de segunda instância desse caso [a dos desembargadores da 5º Câmara], ainda há quem acredite que estar bêbada é justamente a causa de absolvição do estuprador, pois, se estava bêbada, estava querendo. E aqui é importante frisar um aspecto: a lei não determina que estar bêbada ou sob efeito de drogas configura vulnerabilidade. O que está determinado é não pode oferecer resistência. Ou seja, qualquer causa é qualquer causa. Pode ser medicação, estado de coma, overdose por drogas ou qualquer situação que impeça resistência.
MC. Sobre esse caso do Rio Grande do Sul, os desembargadores que absolveram o acusado dizem que a vítima teria bebido voluntariamente, se exposto ao risco e logo teria noção de sua situação vulnerável. Você vê falhas nesse julgamento?
IG. Sim, a desconsideração do consentimento como o elemento fundante e fundamental para a prática sexual e a desconsideração também de que a embriaguez completa impede, definitivamente, que qualquer pessoa possa consentir com qualquer coisa. O que os desembargadores desse caso fizeram é o que chamamos de violência institucional, ou seja, a prática de violência pelo Estado. Sem dúvidas podemos afirmar que o Judiciário brasileiro é machista e reproduz sensos comuns que muitas vezes são contrários à própria lei.
Por Natacha Cortêz