Em dez anos como médica legista do IML (Instituto Médico Legal) de São Paulo, aconteceu uma vez de Mariana da Silva Ferreira, 40, pensar em desistir. Foi depois de atender, em 2011, uma menina de três anos com a fralda encharcada de sangue. Ela tinha que fazer um laudo pericial para dizer se havia indícios de estupro. “A criança tinha lesões genitais tão graves que, quando vi a situação, meu mundo caiu. Fui para o banheiro chorar.” A menina havia sido violentada pelo vizinho de porta da família, uma pessoa a quem a mãe confiava a filha quando precisava sair de casa.
(Universa, 30/09/2019 – acesse no site de origem)
“Pensei comigo: ‘Chega, não volto mais’.” Fez uma carta de exoneração e apresentou à direção do IML. Estava prestes a deixar o cargo, mas uma pergunta insistia em ecoar na sua cabeça: “Por que tanta criança?”. Queria saber por que a maioria das vítimas que atendia tinham menos de 12 anos. Desistiu de desistir. Encontrar uma resposta se tornou sua obsessão.
Começou a tratar as pacientes “como pessoas, não como casos”, colocou adesivos da Turma da Mônica na sala de perícia e passou a distribuir balões, anéis de plástico, “como os de festa infantil”, e pirulitos aos pequenos. E fundou uma entidade para prevenção da violência sexual, a Pródigs, por meio da qual dá palestras e cursos de capacitação e divulga material informativo. Também criou, no primeiro semestre de 2019, um curso de mesmo tema na Academia de Polícia Civil de São Paulo — é a primeira vez que a instituição trata do assunto no treinamento dos policiais do estado.
Nesses dez anos, contabiliza 4.000 perícias de sexologia forense. A paciente mais jovem tinha sete dias de vida. Em uma mesma semana, chegou a atender um bebê de seis meses e uma senhora de 80 anos, ambas vítimas de estupro. “É um trabalho que me faz por em xeque a fé nas pessoas porque está na minha mão, para eu examinar, o resultado do pior que um ser humano pode fazer.”
“Apesar de haver muitos casos de estupro de menores, vejo mais abertura para discutir o assunto e menos tolerância das pessoas aos crimes”
No IML em que trabalha, situado no Hospital Pérola Byington, na capital paulista, trabalha 40 horas semanais, intercalando plantões. Atende muitas garotas violentadas sexualmente por pais e padrastos, lida com familiares negligentes e pericia mulheres arrasadas por violações de todo tipo. Afirma que a porcentagem de pacientes do sexo feminino segue os números das pesquisas sobre estupros: cerca de 70% a 80% dos casos.
“Como você consegue?”, é a pergunta que mais escuta. “É como diz o dependente químico: um dia de cada vez”, responde. E, ao lembrar que seu incômodo não chega aos pés da devastação que um estupro faz na vida de uma vítima, dá sentido ao seu trabalho: “Se entrou comigo, é a pessoa mais importante do mundo naquele momento. É a minha maneira de ajudá-las”.
Estupro de crianças: uma epidemia brasileira
O Brasil vive uma trágica epidemia de violência sexual contra menores. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, uma menina de até 13 anos é estuprada a cada 15 minutos. Um estudo inédito do Instituto Sou da Paz que será divulgado nos próximos dias mostra que, enquanto estupros em geral caíram 2,5% no primeiro semestre de 2019 em relação ao mesmo período de 2018, os registros do crime contra vulneráveis (menores de 14) subiram 1%.
Apesar dos dados e de conviver diariamente com a realidade chocante que os números representam, Mariana consegue ter seu lado otimista. “Acho que estamos em um momento de transição: apesar de haver muitos casos, vejo mais abertura para discutir o assunto e menos tolerância das pessoas aos crimes”, diz. “O curso que dou na Academia de Polícia, por exemplo, não existiria há alguns anos. Não era um tema para o qual se dava atenção.”
Pela Pródigs, ela conta, já deu palestras em salão de prédio, escola, universidade e igreja. “Tem muita gente querendo aprender. Depois das aulas, sempre recebo mensagens e emails dizendo: ‘Conseguimos denunciar, o agressor foi preso’.”
“Quando Damares assumiu, pensei que teria potencial em relação à prevenção”
Mariana tinha esperança de que, ao assumir o cargo, a ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pudesse apresentar propostas para resolver o problema. “Vi o depoimento dela contando que também foi abusada, é chocante. Pensei que, por já ter vivido isso, seu governo teria muito potencial em relação à prevenção.”
Mas o que observou foi não só a falta de políticas públicas voltadas ao tema, mas também um projeto que poderia piorar ainda mais a situação das vítimas. “Quando soube da notícia do ensino domiciliar, aquilo me arrepiou inteira. A maioria dos abusos acontece dentro de casa, todas as estatísticas provam isso. Então é deixar a criança à mercê do abusador.”
Pais estupram, mães são negligentes: quem mais denuncia é a escola
Pais, padrastos, tios, avôs e amigos da família são, na maioria das vezes, os autores da agressão. A mãe que vê isso vai direto denunciar, certo? Não, pelo contrário. Mariana explica que percebe resistência para o que o tema saia do seio familiar. “A família prefere esconder e resolver entre eles, é como se denunciar fosse trazer uma vergonha para todos. Escuto muito que não querem expor o cara nem destruir a família”, diz. “Aí pergunto: que família?”
Certa vez, conta, recebeu três garotas, entre 7 e 15 anos, encaminhadas para perícia durante investigação após uma denúncia anônima. Sobre a de 15, a mãe disse: “Ela já é grande, sabia o que estava fazendo”. Os abusos aconteciam há meses, e tanto mãe quanto avó sabiam que o pai estuprou as três filhas por dois anos.
partir da própria experiência, Mariana vê na escola a chave para combater a violência sexual infantil. “A criança passa tempo lá, os professores conhecem o comportamento dela e podem notar mudanças, veem um desenho, têm tempo para conversar”, diz. “Por isso, é tão importante falar de sexualidade infantil em sala de aula.”
Educação sexual é ensinar a criança a fazer sexo?
“Quando falamos de sexualidade infantil, logo associam com ensinar a criança a ter relações sexuais. Não tem nada a ver”, diz a médica. “Educação sexual é explicar que a região íntima é uma parte do corpo onde ninguém pode fazer carinho, um adulto não pode passar a mão nem colocar a boca e, se isso acontecer, precisa contar para a mamãe.”
Pós-graduada em sexualidade humana pela USP (Universidade de São Paulo), o que lhe dá o título de sexóloga, Mariana usa as táticas de conversa dentro de casa. “Esses dias um dos meus filhos veio me dizer que ‘brincaram’ com o ‘pipi’ dele na escola. Fiquei nervosa na hora. Aí ele falou que foi uma amiguinha da mesma idade. Graças a Deus! Percebi que o pedido de que ele me contasse se alguém tocasse nele estava dando certo.”
Mariana diz ainda que há, sim, um prazer em tocar os órgãos sexuais por parte dos pequenos. “Mas não é o prazer sexual. Costumo relacionar com colocar cotonete no ouvido: é uma sensação gostosa, que não tem a ver com sexo.”
“Laudo negativo não é prova de que não houve estupro”
A médica conta como fica aflita em casos em que o laudo pericial dá negativo, ou seja, quando não há nenhuma marca física que prove o crime. Em muitas investigações, não há preocupação em colher outras provas, e a perícia acaba sendo decisiva.
O problema, diz, é que estupradores de menores seguem um padrão: os primeiros abusos não costumam deixar lesões. “Começam com passadas de mão, sexo oral. No geral, eles não deixam lesões, pois sabem que serão pegos”, diz.
Para explicar melhor o problema, ela relembra um de seus casos. “Uma garota de 21 anos chegou aqui contando que era estuprada desde os seis pelo padrasto. Ainda criança, depois de uma denúncia anônima, passou por uma perícia, que deu negativa. O caso foi arquivado”, diz. “O padrasto pegou uma cópia do laudo e a garota dizia lembrar dele balançando o documento no rosto dela: ‘Viu? Deu negativo. Agora você vai virar a mulher da casa’. Foi quando começaram as penetrações.”
Aos 12, a garota fugiu de casa. E, aos 21, fez a denúncia porque ficou sabendo que o mesmo homem, agora, estava abusando das sobrinhas.
Estuprador de criança não é monstro nem doente
Mariana é taxativa: quem violenta uma criança não é um “monstro”, como se costuma falar. “São pessoas agradáveis, de quem todos gostam, e tem uma imagem positiva na comunidade”, diz.
Ela ainda explica que abusadores não são, necessariamente, pedófilos, como dita o senso comum. “Apenas 20% dos agressores têm diagnóstico da doença. Dizer que é um doente é fazê-lo se beneficiar legalmente”, afirma, referindo-se à possibilidade de pessoas com doenças mentais serem consideradas inimputáveis, ou seja, não poderem ser punidas criminalmente.
“Denuncie. Se não der em nada, denuncie de novo. E de novo”
Há algumas maneiras de denunciar um abuso infantil. Uma delas é o Disque 100. O número do governo federal é um canal que recebe denúncias anônimas e repassa a órgãos competentes, como conselhos tutelares e Ministério Público. Também é possível procurar diretamente o conselho tutelar local ou qualquer delegacia.
“Já escutei de vítimas adultas violentadas na infância: ‘Todo mundo sabia, e ninguém fez nada’. É triste demais”, diz Mariana. “Por isso, minha orientação é: denuncie. Tem gente que diz que não dá em nada, mas eu respondo: denuncie de novo e de novo. Não pare de denunciar. Quem se omite também comete um abuso.”
Por Camila Brandalise