Em tempos extremos, precisamos falar sobre violência e sexualidade infantil, por Bernardo Machado

15 de outubro, 2019

O combate à violência sexual infantil avançou muito, com novas leis, criadas desde a publicação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que coibiram práticas e promoveram direitos dessa população. Entretanto, nos últimos anos, os ânimos sociais atingiram patamares efervescentes em controvérsias públicas como a chamada “ideologia de gênero”, o caso do Queermuseu ou a recente ação da prefeitura do Rio de Janeiro para retirar de circulação uma revista em quadrinhos que continha o beijo entre dois homens adultos vestidos. Nesses casos, as vozes se exaltaram e termos muito distintos como “violência”, “abuso”, “sexualização”, “sexualidade” e “pedofilia” passaram a ser usados como sinônimos. Ainda que o assunto gere controvérsias, precisamos, enquanto sociedade, tratar seriamente do tema e estabelecer parâmetros adequados para a discussão.

(Bernardo Machado – UOL, 15/10/2019 – acesse no site de origem)

Se hoje essa conversa soa quase impossível, vale resgatar um período – entre os anos 1990 e a primeira década do século XX – em que se realizou um debate comprometido sobre o assunto, chegando inclusive a consensos. Neste texto, apresentarei brevemente os acordos firmados, os significados de termos centrais e, por fim, os pontos de discordância e de tensão que incomodam.

As concordâncias

No Brasil, até o final do século XX, o estupro contra crianças e adolescentes não era definido como uma criminalidade particular, mas enquadrado como uma “ofensa” à honra ou à pessoa. No Código Penal de 1890, por exemplo, o assunto aparecia sob o título “dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”.O delito de defloramento – descrito como “deflorar mulher menor de idade, empregando sedução, engano ou fraude” no art. 267 do CP/1890 – acometia justamente o bem jurídico tutelado, não a pessoa em si, mas a honra da família. Por esse motivo, a pena era anulada caso o ofensor viesse a se casar com a vítima e restaurasse a dignidade familiar.á no Código Penal de 1940 (até hoje vigente), houve uma inflexão na descrição das ofensas sexuais. Na legislação, o bem jurídico protegido tornou-se a liberdade sexual da pessoa, definida como a capacidade do sujeito de agir livremente segundo seus próprios desejos.

Com a Constituição de 1988 – e a legislação dela derivada –, criaram-se mecanismos específicos para tratar da violência sexual contra a criança. Se antes a violência era entendida como um problema relacionado à desigualdade entre homens e mulheres, no final do século XX, ela passou a ser vista muito mais como uma questão relacionada à desigualdade entre crianças e adultos, conforme explica a antropóloga Tatiana Landini. O Estado, a família e a sociedade tornam-se responsáveis por proteger as crianças e os adolescentes contra todas as formas de exploração e de abuso sexual.

Nos anos seguintes, presenciamos o crescimento da preocupação com essa população. Houve, inclusive, um esforço suprapartidário de tipificar e detalhar condutas para estabelecer novas percepções de crimes sexuais. Por exemplo, entre 2008 e 2010, a CPI da Pedofilia se dedicou a investigar e apurar a utilização da internet para a prática de crimes de pedofilia e a relação desses com o crime organizado. O grupo de trabalho era bastante diverso em termos de composição partidária, com senadores/as do PR, DEM, PMDB, PSDB, PT, PSB, PCdoB, PRB, PP e PTB. Na ocasião, participaram, ainda, Policiais Federais, membros dos Ministérios Público Federal e Estaduais e ONGs. Embora tenham existido embates e discordâncias, estabeleceu-se um acordo legislativo, jurídico e social para coibir a violência sexual contra crianças e adolescentes.

Como resultado da preocupação acumulada em duas décadas, em 2009, a Lei 12.015 revogou o crime do atentado violento ao pudor e criou o delito de estupro de vulnerável (art. 217-A do atual Código Penal). O objetivo era evitar que decisões judiciais relativizassem a violência e validassem o consentimento da pessoa menor de 14 anos.

Se durante um período de quase duas décadas, a arena para diálogo se manteve aberta; nos últimos anos, a comunicação se interrompeu. Antes de discutir essas questões, é preciso definir alguns termos centrais.

Os conceitos

A antropóloga Laura Lowenkron fez um esforço fundamental ao definir as diferenças entre abuso e exploração sexual infantil e pedofilia.

Segundo ela, a categoria abuso sexual infantil foi formulada dentro do universo dos estudos da psicologia e da psicanálise. O termo dá ênfase na assimetria de poder – pela diferença de idade e de experiência – e no dano psicológico do ato decorrente. O fundamental é que o consentimento sexual da criança não é considerado válido, ela é um “objeto” da satisfação do desejo alheio e nunca um sujeito.

Já a expressão exploração sexual infantil evidencia a mercantilização do corpo, a sua colocação em uma situação de mercado e a condição passiva das crianças ou adolescentes que se envolvem nessas atividades. Enquanto o termo “abuso” se refere a atos isolados ou interações sexuais interpessoais, a palavra “exploração” remete a redes de pessoas e condutas. Assim, o conceito evita responsabilizar a criança e a/o adolescente escapando de uma acusação moral que os classificaria como “promíscuos”.

A pedofilia é, talvez, a palavra mais empregada pelas pessoas, mas de forma pouco precisa. A origem remonta a psiquiatria e se refere a uma modalidade de “perversão sexual” , caracterizada pelo foco do interesse sexual em crianças pré-púberes (geralmente com 14 anos ou menos) por parte de indivíduos com 16 anos ou mais que sejam ao menos cinco anos mais velhos que a criança. Nesse sentido, segundo o Diagnostic and Statistical Manual os Mental Disorder V (2013), para qualificar o distúrbio, o abuso deveria durar um período mínimo de seis meses. O conceito, ao tratar da violência sexual contra a criança, desloca a ênfase do sofrimento da criança para as características psicológicas do pedófilo, ou seja, a anormalidade e a perversidade do adulto.

Na própria CPI da Pedofilia, houve uma discussão para definir qual seria a categoria mais adequada, como conta Lowenkron. Estava em pauta o processo de nova tipificação do crime do antigo “atentado violento ao pudor” contra crianças. O senador Magno Malta defendia o uso do termo “estupro mediante pedofilia”, mas a maior parte dos integrantes defendia que pedofilia seria uma doença e não um crime e, por isso, sugeriu-se o nome “estupro contra criança”. O senador Magno Malta defendia o uso do termo “estupro mediante pedofilia”, mas a maior parte dos integrantes defendia que pedofilia seria uma doença e não um crime e, por isso, sugeriu-se o nome “estupro contra criança”. Prevaleceu o argumento de que era preciso enfatizar não a patologia de um indivíduo, mas sim a responsabilidade da sociedade e do bem jurídico tutelado – a dignidade da criança.

Alguns aspectos da discordância

As rusgas e controvérsias contemporâneas decorrem, em parte, da confusão de tais conceitos e da associação direta entre sexualização infantil, sexualidade das crianças e pedofilia. Há pessoas que sugerem os termos serem sinônimos. É preciso cuidado.

Por sexualização infantil, entende-se o ato de atribuir – por meio de gestos, roupas, ou comportamentos – atitudes sexuais a crianças sem que isso corresponda a práticas. Recentemente, o apresentador Silvio Santos esteve no centro do debate exatamente por esse motivo. Em setembro, o programa realizou um concurso de beleza que dispôs, para avaliação, meninas de 9 e 10 anos trajando maiô. A exposição, em rede nacional, jogava luz justamente a partes dos corpos dessas crianças de modo bastante problemático.

Esse tipo de exposição não corresponde a práticas sexuais, que dizem respeito a atos envolvendo carícias íntimas entre pessoas – no programa de Silvio Santos não houve nenhum ato sexual. Mesmo assim, é possível inferir que uma sexualização infantil autoriza, mesmo que indiretamente, violências sexuais com crianças. Nesse caso, o adulto que realiza práticas sexuais com crianças ou adolescentes pode ser denominado como pedófilo – a depender de uma avaliação psicológica/médica.

Por fim, um aspecto totalmente diferente dessa discussão diz respeito à sexualidade das crianças. As pessoas, ao longo de sua infância e adolescência, começam a entender e experimentar seus desejos e atrações. É comum que um menino pergunte para a mãe se pode casar com ela ou uma menina pergunte para o pai se pode ser sua esposa. A curiosidade sobre sua sexualidade leva a esse tipo de colocação. Será durante a fase de formação que algumas crianças irão dar as mãos, beijar os rostos, perguntar sobre suas genitálias e assim por diante.  É um processo de compreensão de sua sexualidade.

As primeiras questões a respeito da orientação sexual ocorrem, inclusive na adolescência ou ainda na infância. A orientação sexual refere-se aos desejos afetivos e sexuais das pessoas por pessoas de outro gênero (heterossexuais), do mesmo gênero (homossexuais), de ambos (bissexuais) ou de nenhum (assexuais). É grave quando um discurso assume que qualquer menção a sexualidade das crianças corresponde a violação sexual ou pedofilia. Como dito, são aspectos muitíssimo distintos.

Me parece que os grandes dilemas sociais mais recentes – como a proibição da história em quadrinhos na Bienal do Rio de Janeiro, a disputa em torno do Queermuseu, o debate a respeito da “ideologia de gênero” – esbarram nas definições e indefinições desses muitos termos. Tratarei dessas questões em detalhe em colunas futuras. O debate precisa existir, mas deve ser travado de forma responsável, evitando o excesso de adjetivos, de caricaturas e de desinformações que andam ativas nas redes sociais e nas palavras de autoridades.

Por Bernardo Machado

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