Sofri abuso na infância, ninguém acreditou em mim, e hoje ele é pastor

02 de janeiro, 2019

Priscila*, de 38 anos, subiu o tom num debate sobre o caso do João de Deus numa rede social: algumas internautas afirmaram achar estranho que uma mulher fique calada durante anos e só agora acuse o médium de abuso sexual. A contestação coloca em xeque o depoimento de mais de 300 vítimas. Mas aconteceu algo parecido com a carioca, que trabalha com serviços gerais — por isso ela ficou tão nervosa ao ler sobre o assunto. Ela foi abusada dos 8 aos 11 anos por um membro da família e disse na internet: “Vamos parar de culpar a vítima. Já basta a culpa que carregamos durante
anos”. Ela conta sua história à Universa.

(Universa, 02/01/2018 – acesse no site de origem)

“Aos 8 anos, minha mãe saía para trabalhar, e me deixava na casa da minha tia, em cima da nossa. Ali moravam ainda uma prima com o marido dela e o filho desse casal.

Nos primeiros dias, lembro que foi tranquilo, até que uma vez, dentro da piscina de casa, esse marido da minha prima ficou passando a mão no meu bumbum. Dizia que era brincadeira. No dia seguinte, foi para os peitos e a vagina. Eu lembro que ficava parada, sem me mexer ou olhar para ele. Era uma sensação horrível.

Ele dizia que era um segredo nosso e que, se eu contasse para alguém, não acreditariam em mim. Falava ainda que minha mãe deixava aquilo acontecer, que era para eu aprender mais sobre a vida. Afirmava que era ‘santo’ e não me deixaria me perder no mundo. Ele é evangélico, criou os filhos na igreja e hoje é um pastor famoso na cidade onde vive, no Espírito Santo. Até hoje lembro dele falando: ‘olha que gostoso, está fazendo cócegas’. E me fazia tocá-lo também. Até que ele mudou para o Espírito Santo.

Decidi contar tudo para minha mãe porque ele tentou a penetração quando eu fiz 11 anos. Foi num dia em que soube que iríamos todos viajar para a casa dele, então fiquei apavorada. Chamei minha mãe e falei tudo. Ela me olhou e me deu um tapa na cara. Disse para eu calar minha boca, antes de me dar socos na cabeça. Fui acusada de mentir, porque ele era um homem de Deus e bem casado e, portanto, sem necessidade de ‘pegar’ qualquer uma.

Ele estava em casa neste momento e, como ela gritou muito, acho que ouviu a briga. Antes de todos sairmos, ele inventou uma desculpa e viajou primeiro. E nunca mais fez nada comigo. Apesar da briga, viajamos e, chegando lá na casa desse homem, ele me olhava desconfiado. Cheguei a contar para uma prima e me lembro de ouvir que ele fazia a mesma coisa com ela.

Aos 13 anos, ou seja, dois anos depois disso tudo e sem minha mãe falar mais nada sobre o assunto, um irmão dela foi nos visitar. Lembro de estar dormindo quando senti algo puxando meu short, mas quando abri os olhos não vi ninguém. No dia seguinte, senti novamente, e consegui segurar a mão da pessoa que tentava me tocar: era meu tio. Ele se assustou, foi embora no dia seguinte e nunca mais nos vimos. Não contei a ninguém sobre isso, porque não iriam acreditar.

É muito difícil acreditarem nas vítimas porque geralmente os abusadores são homens de família. Às vezes, é difícil acreditar em nós mesmas. Parece que tudo foi um pesadelo, ou coisa da nossa mente. Quando eu vejo esse homem, ponho em dúvida minhas lembranças. E hoje ele é um pastor bem famoso.

Uma das filhas dele simplesmente se distanciou da família e há três anos mora na Austrália. Às vezes, me pergunto se ela não sofreu também.

Penso que não posso mudar o que aconteceu comigo, mas também não posso deixar isso me consumir. Hoje em dia, não deixo o que passei me afetar tanto. Já sofri muito calada. Passei anos sem dormir à noite direito. Não deixava ninguém me encostar. Não gosto que me toquem. Também tenho crise de ansiedade, não suporto gritos e detesto sexo.

Hoje, estou casada e tenho quatro filhos. Meu marido sabe de tudo. Uma vez, vi a minha filha mais velha, hoje com 22 anos, perto desse homem que abusou de mim. Ela tinha 13. Quase tive um treco. Foi quando contei tudo para ela. Sua reação foi a de chorar e me pedir desculpas por não saber de nada.”

*Omitimos o sobrenome para proteger a entrevistada

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