A cada quatro horas uma menina de até 13 anos é vítima de violência sexual, aponta o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
(HuffPost, 15/09/2019 – acesse no site de origem)
Pela primeira vez, pesquisadores do Fórum de Segurança Pública (FSP), responsáveis pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, relatório que publica anualmente estatísticas de violência no País, tiveram acesso ao que chamam de “microdados” sobre violência sexual, considerado um dos crimes com o maior nível de subnotificação no País.
“A diferença deste ano é que conseguimos acessar dados mais específicos, o que possibilitou um melhor entendimento sobre tanto quem é a vítima, quanto qual é o perfil do agressor e do local em que essa violência acontece”, explica Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FSB), em entrevista ao HuffPost.
Só em 2018, o País atingiu o recorde de registros de estupros. Foram 66 mil vítimas, o equivalente a 180 estupros por dia ― maior número deste tipo de crime desde que o relatório começou a ser feito, em 2007.
Ainda segundo o relatório, a maioria das vítimas é menor de idade, do sexo feminino e este tipo de violência acontece dentro de casa. A cada quatro horas, uma menina com menos de 13 anos é estuprada no Brasil por um conhecido. Em sua maior parte, as vítimas são negras (50,9%).
“Enquanto acharmos que falar de sexualidade é uma prerrogativa exclusiva da família, estaremos incentivando estupro no Brasil.” Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum de Segurança Pública.
“Eu penso que o aumento não é só reflexo de uma violência que acontece. Os números aqui analisados são apenas a face mais visível de um enorme problema”, aponta Bueno. Ela destaca que, nos últimos anos, o tema da violência de gênero entrou na agenda da imprensa e do Judiciário ― o que causou um efeito positivo quando as estatísticas são analisadas.
O estudo mostra que parte significativa dos estupros que ocorrem no Brasil é o de vulnerável ― contra crianças menores de 14 anos ou pessoas com doenças ou deficiência mental que não têm discernimento para a prática do ato e que não podem oferecer resistência ―, um total de 63,8% das vítimas.
Violência contra a mulher e feminicídios
Além do crescimento da violência sexual, o anuário contabiliza alta dos homicídios contra mulheres em razão de gênero, o chamado feminicídio, descrito no Código Penal, após alteração feita pela Lei nº 13.104, em 2015.
Em 2018, 1.206 mulheres foram vítimas de feminicídio, uma alta de 4% em relação ao ano anterior. De cada dez mulheres mortas, seis eram negras.
A faixa etária das vítimas é mais diluída: 28,2% têm entre 20 e 29 anos, 29,8% entre 30 e 39 anos. E 18,5% entre 40 e 49 anos. Nove em cada dez assassinos de mulheres são companheiros ou ex-companheiros
A maioria dos crimes é praticado contra meninas de 10 a 13 anos, cerca de 28,6%. O relatório ainda aponta que 96,3% dos autores do crime de estupro são do sexo masculino, e que em 75,9% dos casos eles são conhecidos da vítima. Este padrão indica que o crime costuma acontecer dentro da própria família, diferente da ideia de que o estupro é cometido à noite, na rua e por um homem desconhecido.
“Esse aumento [de registros] acontece porque o tema da violência de gênero entrou na agenda da imprensa, do Judiciário e do movimento feminista. Hoje as mulheres estão mais seguras para falar, o que estimula a denúncia”, diz a especialista.
Entre os motivos para a baixa notificação, Bueno destaca o medo de retaliação por parte do agressor (que é geralmente conhecido da vítima), o receio de julgamento e o descrédito nas instituições policiais e de Justiça.
“A gente, enquanto sociedade, ainda é muito moralista em relação à violência sexual.” Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum de Segurança Pública.
“O primeiro passo que se faz quando da denúncia deste tipo de crime, seja por uma mulher ou menina, é duvidar da palavra da vítima”, explica.
Outra pesquisa produzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016, mostrou que 43% dos brasileiros do sexo masculino com 16 anos ou mais acreditavam que “mulheres que não se dão ao respeito são estupradas”.
Para a pesquisadora, a saída para combater este tipo de crime vai além da criação de tipos penais e passa, principalmente, pela educação. “Enquanto acharmos que falar sobre sexualidade é prerrogativa exclusiva da família, estamos incentivando o estupro no Brasil.”
Em entrevista ao HuffPost, Bueno explica o resultado da pesquisa e chama atenção para o panorama da violência sexual contra meninas no Brasil. Para ela, o País avançou no combate à violência doméstica e ao feminicídio, mas anda a passos lentos quando o tema é violência sexual.
Leia trechos da conversa.
HuffPost: O relatório deste ano mostra que são registrados por dia cerca de 180 estupros no Brasil. O que esses dados podem dizer sobre como o País trata a violência sexual?
Samira Bueno: A diferença deste ano é que conseguimos acessar esses dados mais específicos, o que possibilitou um melhor entendimento sobre tanto quem é a vítima, quanto qual é o perfil do agressor e do local em que essa violência acontece. E esses são os dados que mais chamam atenção no relatório por conta do perfil da vítima. Nós estamos falando basicamente de meninas, de crianças. 53% das vítimas tinham, no máximo, 13 anos. Já no caso dos meninos, que o número é menor e também invisível, o auge da violência se dá aos 7 anos de idade.
O número de 180 estupros por dia é muito alto. Mas especialmente porque a gente está falando de uma violência que tem uma característica específica: ela ocorre no âmbito doméstico. São crianças que estão sendo violadas dentro de casa por algum conhecido, por alguém em que elas confiam, que elas têm um vínculo. E é difícil, em um país moralista como o Brasil, aceitar que o ambiente doméstico pode ser tão violento e hostil. Para uma sociedade moralista e que diz prezar tanto pela família, é um tabu reconhecer esta violência.
A que se deve o aumento e a subnotificação deste crime?
O que divulgamos agora no anuário são as estatísticas com base nos registros policiais. E para ter um registro como este, você precisa que uma vítima vá até uma delegacia para o fato se transformar em um boletim de ocorrência e, então, em estatística. Todos esses dados são frutos dos boletins de ocorrência produzidos pela Polícia Civil em todo o território nacional.
Mas existe uma enorme subnotificação: seja porque a vítima teme uma retaliação do parceiro, seja por vergonha ou constrangimento, pela falta de confiança que a Justiça e a polícia vão acreditar na palavra dela e dar continuidade ao caso ― o que acaba refletindo em níveis muito altos de subnotificação neste tipo de crime.
E, então, o aumento desse número não é só reflexo de uma violência que acontece. Os números aqui analisados são apenas a face mais visível de um enorme problema. A gente, enquanto sociedade, ainda é muito moralista em relação à violência sexual. O primeiro passo que se faz quando da denúncia deste tipo de crime, seja por uma mulher ou menina, é duvidar da vítima.
Eu acredito que parte do aumento [de registros] acontece porque o tema da violência de gênero entrou na agenda da imprensa, do Judiciário e do movimento feminista. Fruto disso é um movimento de mulheres que se sentem mais seguras para falar sobre isso, o que, de certa forma, estimula a denúncia. Mas hoje, ainda, se uma mulher chega à delegacia com o olho roxo, ela é atendida de uma forma; se ela chega alegando que foi estuprada, e essa violência não tem resquícios e provas, cria-se um ciclo de revitimização.
A razão para o aumento deste número se dá por uma questão cultural ou pela ausência de políticas públicas no País sobre este tema?
Olha, o Estado tem responsabilidade de intervir. E eu acho que é aí que fica o nosso desafio [do Fórum de Segurança Pública] em trazer esses números e colocá-los em evidência. Não podemos achar que por ser uma violência que acontece no ambiente doméstico, o Estado não tem nada a ver com isso.
E eu acho que, culturalmente, a gente avançou mais no debate sobre a violência doméstica e feminicídios ― pensando em tudo o que traz a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio ― do que sobre crimes sexuais. Acho que essa questão ainda é um tabu. Esse é um debate que a gente ainda não fez.
E, no caso das crianças, a nossa legislação versa sobre este crime, o estupro de vulnerável, que criminaliza relações sexuais com menores de 14 anos, independente de haver o consentimento ou não. Então, esse entendimento existe por parte do Estado: de que não há o que consentir se você não tem capacidade de fazê-lo sendo tão jovem. Mas o que vemos hoje, ainda, são respostas práticas muito frágeis para combater este tipo de violência.
O combate à violência sexual, então, passa pela educação?
Esta é uma questão. E, quando a gente olha para o perfil da vítima, e para a ação do governador João Doria na última semana, de recolher apostilas que falavam sobre identidade de gênero, sexualidade e prevenção da gravidez ― que é confundido hoje com o que é entendido como “ideologia de gênero” ―, mostra o quanto estamos atrasados e conservadores nesse assunto.
Ora, se a maior parte das vítimas é criança, a gente não vai superar essa questão se a gente não falar de educação sexual nas escolas. Até porque muitas dessas crianças só vão entender o que é uma violência falando sobre ela, entendendo o que pode e o que não pode. Essa ideia de que a família é o único ator legítimo para educar sobre sexualidade é uma falácia.
Os dados deste ano desmistificam a ideia de que o estupro ocorre apenas em um beco, à noite, com mulheres adultas, por parte de um homem que vai te pegar à força. Essa não é a característica dos estupros no Brasil. Aqui, ele acontece dentro de casa e o criminoso pode ser um tio, primo, padrasto.
Se esse jovem não está aprendendo sobre sexualidade na escola, ele vai buscar essa informação em outros lugares e nem sempre ela será a mais qualificada. Enquanto acharmos que falar sobre sexualidade é prerrogativa exclusiva da família, estamos incentivando o estupro no Brasil.
Por Andréa Martinelli