Vítima afirma que há um longo caminho para que a lei seja cumprida na prática. Especialistas alertam para necessidade de monitorar aplicação
(R7, 03/10/2018 – acesse no site de origem)
A fotógrafa Amanda Venceslau Melo, de 27 anos, rompeu o silêncio depois de conviver muitos anos com o ódio, a raiva e a impotência de quem já sofreu um assédio em local público. Em março do ano passado, na estação República, Amanda se desesperou ao ser seguida por um homem que se masturbava na plataforma do metrô de São Paulo.
Essa não foi a primeira vez que a jovem passou por uma situação de importunação sexual. Com apenas nove anos, relata ter tido as nádegas tocadas por um homem, de aparentemente 30 ou 40 anos, em um parque público.
“Isso é uma situação muito corriqueira, somos assediadas o tempo todo”, diz ela. Sancionada há uma semana pela Presidência da República, a legislação define como crime importunação sexual e divulgação de cenas de estupro. A importunação sexual é caracterizada pela realização de um ato libidinoso na presença de alguém e sem a anuência dessa pessoa.
Os casos mais recorrentes são de assédios sofridos por mulheres em meios de transporte coletivo. Antes, eram considerados apenas contravenção penal com pena de multa. Agora, quem praticá-lo poderá pegar de um a cinco anos de prisão.
A promotora do Gevid (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica), Silvia Chakian, afirma que havia uma lacuna na legislação brasileira no que diz respeito a casos de assédio em locais públicos. “Sempre aconteceu e sempre foi banalizado e a resposta era insuficiente, contribuindo para a banalização”, diz ela. “É uma prática aviltante e humilhante. A nova lei considera esse comportamento de considerar o corpo da mulher como propriedade pública como algo extremamente grave.”
Apesar de reconhecer a relevância da nova legislação, Amanda acredita que há um longo caminho para quem estabelece contato direto com as vítimas. “Fica um disse, não disse, uma palavra contra a outra e ninguém considera a palavra de uma mulher”, afirma. Ao descer de um vagão, Amanda foi abordada por homem que, segundo ela, se mostrou gentil e disse ter o celular travado. “Vi que não podia ajuda-lo e sugeri procurar os guardas. Percebi que ele estava enrolando e quando subi as escadas estávamos só nós dois”, diz.
“Olhei para trás e ele estava andando na minha direção com o pênis para fora se masturbando. Ele passou ao meu lado e eu joguei a mochila, ele falou algumas besteiras e eu comecei a gritar. Ninguém fez nada”, lembra Amanda. A jovem afirma ter documentado o caso: “disseram que iam apurar, mas não fizeram nada.” Para ela, os homens assediadores continuam a agir assim porque se sentem impunes. “Sinto ódio e raiva, me sinto um objeto ao ser tocada por uma pessoa que não conheço.”
Não foi a primeira vez que Amanda foi vítima de uma importunação sexual. Aos nove anos, ela relata ter vivenciado outro caso de assédio. “Estava com a minha família e um primo. Senti que estavam tocando minha bunda, olhei e vi que era um homem bem mais velho. Devia ter 30, 40 anos”, diz. “Fiquei com muita vergonha e demorei muito para entender o que havia acontecido.”
Esse tipo de situação, afirma Silvia, é um “atentado à liberdade sexual de uma mulher”, que ocorre quase que diariamente, no trajeto para casa, escola ou trabalho. “Uma lei como essa é um ponto de partida e, infelizmente, precisamos de uma legislação para dizer que ejacular em uma mulher é crime diz Silvia. A promotora reconhece, porém, a mudança completa não será resultado apenas de uma tipificação penal.
Olhar cuidadoso para a vítima
Não apenas no caso da lei contra importunação sexual, mas em todas que combatem crimes contra a mulher é preciso cuidar da aplicação. “É preciso observar o contexto que essas mulheres vivem, evitar a revitimização e minimizar as consequências desse trauma.”
A coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, Valéria Scarance, a lei é um dos principais marcos para a proteção das mulheres ao lado da Lei Maria da Penha e da tipificação do Feminicídio. “Havia duas lacunas em nossa legislação, para criminalizar a importunação sexual e a divulgação de cenas íntimas”, afirma ela. “O Estado tem condições de reprimir essas violências com medidas protetivas, reparação de danos, etc.”
De acordo com a promotora, a partir do momento que a vítima faz o registro é instaurado o inquérito e o denunciado passa a responder pelo crime. Ela explica ainda que mesmo em casos em que a Justiça permite a soltura não significa que a pessoa ficará impune. “Não é que não vai dar em nada, ainda que solta, a pessoa responde pelo crime. É uma liberdade provisória”, diz.
Marcos como esses, diz Valéria, buscam também criar uma conscientização sobre a recorrência do problema. “As pessoas percebem os traumas e as consequências. Os importunadores tendem a se recolher”, afirma a promotora.
Outras mudanças
A nova lei também prevê o aumento de pena para estupros praticados por duas ou mais pessoas, o estupro coletivo, e para o chamado estupro “corretivo”, quando praticado para correção da orientação sexual de pessoas.
O avanço da nova lei também se refere ao estupro de vulnerável. “Também será considerado estupro de vulnerável quando a vítima for criança com noções sexuais. Nesses casos, as penas eram flexibilizadas, mas não se considerava que em muitos casos são obrigadas a prostituição pela exclusão social”, afirma Silvia.
Outra mudança da nova legislação é a criminalização da divulgação de cenas de estupro, sexo, pornografia e nudez sem o consentimento da vítima. A pena será ainda maior caso o agressor tenha relação afetiva com a vítima. A lei vem sendo chamada também de lei Rose Leonel para lembrar do caso da paranaense que, há 12 anos, ao terminar um relacionamento teve mais de 15 mil e-mails vazados com fotos íntimas divulgadas pela cidade de Maringá.
Amanda, assediada no metrô e ainda criança em um parque público de São Paulo, acredita, além das mudanças na lei, é preciso denunciar. “Já desisti várias vezes, hoje não fico mais em silêncio.”
Fabíola Perez