Violência vicária: Crianças viram armas para agressões contra brasileiras na Europa

Violencia contra meninas mulheres

Foto: Marcello Casal Jr./ Agência Brasil

26 de março, 2025 Gênero e Número Por Hysa Conrado

Brasileiras denunciam físicas e sexuais no exterior são denunciadas aos consulados, mas enfrentam barreiras para vencer na Justiça.

A brasileira Gislayne Macedo, 46, chegou mais cedo em casa após um dia de trabalho na cidade de Seixal, em Portugal, e encontrou a filha, na época com 8 anos, amarrada a uma cadeira na cozinha. Até aquele momento, ela não tinha conhecimento de que a menina também havia se tornado um alvo do ex-marido, um brasileiro filho de portugueses. O episódio foi a gota d’água para que ela decidisse pôr fim ao casamento de 13 anos.

No tribunal, o ex-marido de Gislayne chegou a confessar as agressões contra ela e a filha – com o argumento de que as agredia para se defender ou para conseguir lidar com a criança. Apesar disso, foi determinada a guarda compartilhada.

“A mulher aqui [em Portugal] é um objeto, somos apenas parideiras”, avalia Gislayne.

Com a continuidade das agressões contra a filha na casa do pai, Gislayne passou a impedir que ela fosse até lá. Foi condenada por subtração de menores ao defender a própria filha e, desde 2021, não consegue contato algum com a menina. Ainda em Portugal, continua recorrendo à Justiça.

A sucessão de violências sofrida por Gislayne e sua filha é um caso de violência vicária, aquela que é praticada quando o agressor utiliza principalmente os filhos para causar sofrimento à vítima. Com as agressões físicas e sexuais contra a menina, Gislayne foi duplamente atingida. Com a perda da guarda, triplamente. Esse tipo de acontecimento é recorrente na história de brasileiras que enfrentam processos de divórcio no exterior.

Segundo o Mapa Nacional da Violência de Gênero, em 2023, 808 mulheres pediram ajuda em casos de disputa de guarda, 680 delas apenas na Europa: 200 na Alemanha, 181 em Portugal e 110 na Itália. Entre as 96 mulheres que buscaram repartições consulares para auxílio em casos de subtração de menores, mais uma vez o continente europeu se destaca, somando 54 casos.

O Mapa é um projeto da Gênero e Número, em parceria com o Observatório da Mulher Contra a Violência (OMV) do Senado Federal e o Instituto Natura, que incorporou o Instituto Avon em julho de 2024. Os dados são do Ministério das Relações Exteriores.

A advogada Lívia Possi, especialista em Direito de Família e Sucessões e professora em universidades francesas, explica que, na violência vicária, é comum o agressor ameaçar a mãe e criar formas de tirá-la do convívio do filho.

“Essa situação é extremamente delicada, porque a disputa de guarda se torna internacional, demorada, onerosa e muito arriscada à saúde emocional desta mulher e seus filhos”, explica.

A advogada Beatriz Alaia Colin, especialista em Direito Penal e Processo Penal Nacional e Europeu, ressalta que as diferenças entre as legislações dos países de origem e de residência da vítima podem ter um impacto significativo na disputa de guarda, principalmente se ela quiser voltar para o Brasil.

Nesses casos, os critérios podem variar desde a preferência da Justiça pela guarda compartilhada até a consideração da religião ou da cultura dos pais. Por exemplo, se a mãe não for adepta à religião considerada “correta” para aquele país, pode haver uma influência, ainda que subjetiva, para decidir contra ela – uma vez que ela não passaria os valores “corretos” à criança.

“As leis podem divergir em relação ao direito de visita do genitor que não detém a guarda ou restringir a mudança de país de residência dos filhos após o divórcio, mesmo com a autorização de um dos pais. No Brasil, a guarda definida no exterior pode ser reconhecida e aplicada pela Justiça brasileira, dependendo dos acordos existentes”, explica Colin.

Gislayne relata que pediu ajuda ao consulado brasileiro em Lisboa, mas afirma que não obteve retorno em nenhuma das solicitações. “Já enviei diversos e-mails, mas não vale a pena. O consulado só nos ajuda se quisermos sair de Portugal, ou seja, temos que deixar nossos filhos para trás.”

Em nota enviada à Gênero e Número, o Ministério das Relações Exteriores afirmou que acompanha com atenção os casos de violência doméstica contra brasileiras no exterior e que tem implementado ações para aprimorar a assistência prestada nessas situações.

A pasta pontuou que a rede consular brasileira segue diretrizes que enfatizam a importância da escuta e do acolhimento pelos agentes consulares; a preservação da integridade física da consulente; e o apoio psicológico e jurídico especializado, sempre que possível. O Itamaraty elaborou, em parceria com o Ministério das Mulheres, uma cartilha voltada à prevenção da violência contra mulheres brasileiras no exterior.

Europa no epicentro das violências contra a mulher

A história de Gislayne é parte de um contexto comum experienciado por brasileiras no exterior: em 2023, 1.556 foram vítimas de violência doméstica ou de gênero em outros países. O dado do Ministério das Relações Exteriores está disponível com exclusividade no Mapa.

A Europa é o continente que concentra a maior parte dos registros de violência doméstica e de gênero feitos por brasileiras em repartições consulares. Dos países que compõem o grupo, a Itália está na frente com o maior número de denúncias, somando 350 casos; ela é seguida por Reino Unido (188), Portugal (127) e Espanha (94).

A América do Norte fica em segundo lugar nas estatísticas, com 277 dos casos. São 240 apenas nos Estados Unidos, única localização fora da Europa a figurar entre os cinco países com maior número de denúncias.

Gislayne se mudou para Portugal em 2003 e, em 2007, casou-se casou com o agora ex-marido. Ela relata que as violências começaram quando passou a ganhar mais dinheiro do que o parceiro, cenário que piorou quando ele ficou desempregado.

“A partir daí, começaram as acusações de traição, as ofensas e humilhações. Até que ele mesmo começou a me trair. Quando descobri, disse: ‘Não dá, segue a tua vida’. Mas ele ainda ficou em casa e foi então que começaram as violências físicas. Quando eu tentava conversar para terminar o casamento, ele me puxava pelo braço e me trancava para fora”, conta.

Gislayne diz que nunca recebeu ajuda dos vizinhos ou mesmo pensou em pedir por assistência, por conta das diferenças culturais. O idioma em comum não foi suficiente para que ela se sentisse acolhida. “Aqui não é como no Brasil, onde temos uma amiga que nos acolhe com um café. Aqui, você não chama o vizinho, porque existe essa individualidade”, afirma.

Mesmo que a Europa já esteja no topo do ranking de violência de gênero praticada contra brasileiras no exterior, é possível que esse número seja ainda maior, segundo Marina de Paiva. Ela é mestre em estudos de desenvolvimento internacional voltado para justiça social com foco em conflito, gênero e migração pelo International Institute of Social Studies (ISS) em Haia, nos Países Baixos.

“Quando falamos da condição da mulher brasileira na Europa, há diversos fatores que precisam ser analisados. No caso do Brasil, grande parte da migração se dá de maneira ilegal. O medo da deportação faz com que muitas mulheres não denunciem a violência, o que as deixa ainda mais vulneráveis. Com a crescente hostilidade da Europa em relação à migração, essa situação só piora”, avalia.

Paiva explica que a questão econômica – que muitas vezes está ligada à ilegalidade e à barreira da língua – se soma às dificuldades impostas pela intersecção entre gênero e raça e complica a busca por ajuda e acolhimento. No caso das mulheres negras, a pesquisadora ressalta que a frequente sexualização a que são submetidas as deixa ainda mais vulneráveis a violência e abusos.

Além disso, há aspectos culturais que impactam de maneira decisiva no que as leis versam sobre violência de gênero na União Europeia.

“Ainda que tentem unificar essas definições [sobre o que é violência doméstica], isso não acontece de forma homogênea. Alguns países criminalizaram o sexo sem consentimento, enquanto outros não, por exemplo”, destaca.

A conjuntura política também é um fator determinante nesse contexto. De acordo com Paiva, a recente escalada de governos de direita e extrema direita na Europa afeta o acesso a serviços de assistência e de proteção, com corte de recursos para instituições de apoio – fator que também dificulta a coleta de dados e informações referentes à violência de gênero, seja ela praticada contra mulheres nativas ou migrantes.

“A agenda desses governos muitas vezes enfatiza valores familiares tradicionais, reforçando normas culturais que pressionam as vítimas e desvalorizam suas experiências. Isso faz com que muitas mulheres não denunciem os abusos, levando à falsa impressão de que a violência de gênero não é um problema sistêmico”, explica Paiva.

Gislayne relata que percebeu esse pensamento ao longo dos processos judiciais.

“O juiz dizia que eu precisava esquecer os ‘eventos’ e minha filha foi ameaçada 11 vezes. [Diziam a ela] que eu seria presa [se ela denunciasse o pai]. O juiz disse que só tomaria providências quando o pai ‘partisse um osso’ dela ou saísse ‘nu e bêbado pela rua’.”

“Em outra audiência [quando perdi a guarda da minha filha], a juíza levantou o dedo para mim e disse: ‘Isso foi para você aprender e nunca mais voltar a fazer’. Voltar a fazer o quê? Denunciar violência doméstica?”, questiona a brasileira.

Acesse a reportagem no site de origem.

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