Exposição da vítima jamais pode ser considerada uma ‘estratégia de defesa’
(Folha de S. Paulo | 29/11/2021 / Por Soraia da Rosa Mendes, Priscila Akemi Beltrame e Ilana Muller)
Chegou, enfim, a lei Mariana Ferrer! Publicada em 22 de novembro, a lei 14.245 promoveu alterações no Código Penal, no Código de Processo Penal e na lei 9.099/95 como uma resposta estatal à demanda feminista pelo reconhecimento dos abusos de que são vítimas, sem nenhuma redundância, as vítimas em crimes de gênero —em especial, os sexuais.
De acordo com a nova lei, na audiência de instrução e julgamento, há que zelar pela integridade física e psicológica da vítima. Não é possível, portanto, recorrer a informações, linguagem ou materiais que ofendam a sua dignidade. Tampouco será admitido o uso de circunstâncias alheias aos fatos que são objeto da apuração. Ou seja, não poderá ser perguntado à vítima sobre sua conduta social ou sobre qualquer fato como forma de atenuar o ato de violência ocorrido, jogando sob os ombros da ofendida o “ônus de provar” que é merecedora da proteção penal.
Há muito tempo a literatura jurídica feminista, particularmente das ciências criminais, vem demonstrando que o direito não passa incólume ao simbolismo de gênero do qual o patriarcado se vale como instrumento dentro do sistema de Justiça. Pelo contrário, o processo penal e o modo de funcionamento da máquina judiciária não só reproduzem desigualdades baseadas no gênero, mas produzem novas e muitas desigualdades.
Como aponta a conclusão do relatório “Fracasso em Proteger”, da Equality Now, as leis e práticas discriminatórias em matéria de violência sexual são violadoras institucionais de mulheres e meninas por todo o continente. Não à toa que o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, recentemente editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), traz o conceito de violência institucional, entendendo-a como a situação na qual o Poder Judiciário permite a exposição da vítima mediante, por exemplo, a permissão de que a vida sexual pregressa de uma vítima de estupro seja exposta e devastada. Atitudes estas que, por sinal, jamais podem ser consideradas como “estratégias de defesa”. Ao menos não sob a perspectiva ética da advocacia, da Constituição Federal e dos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos das vítimas firmados pelo Brasil.