(Branca Nunes e Marina Pinhoni, de Veja) Até o fim dos anos 60, apenas 2,3% dos magistrados eram mulheres – número que chegou a 11% na década de 90. Hoje, o percentual resvala em 30%.
O julgamento de Lindemberg Alves, condenado pelo assassinato de Eloá Pimentel, foi caracterizado por episódios singulares – como a revelação de passagens inéditas do mais longo cárcere privado da história policial de São Paulo, a sentença estabelecida em 98 anos e 10 meses e a atuação espalhafatosa de Ana Lúcia Assad, advogada de defesa. Um dos mais marcantes foi a presença de três mulheres no elenco de protagonistas do espetáculo: a promotora Daniela Hashimoto, a juíza Milena Dias e, naturalmente, a própria Ana Lúcia. Tal cena, rigorosamente inviável há poucas décadas, é cada vez mais comum.
Embora ainda minoritária, a participação feminina cresce em todas as áreas do direito. Segundo a cientista política da Universidade de São Paulo (USP) Maria Tereza Sadek, pesquisadora senior do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, até o fim dos anos 1960, 2,3% dos magistrados eram mulheres – número que subiu para 11% no começo da década de 1990. Hoje, o percentual resvala em 30%.
É justamente entre os magistrados que a minoria feminina é mais perceptível. Apesar de a primeira juíza brasileira, Thereza Grisólia Tang, ter estreado nos tribunais de Santa Catarina em 1954 (veja lista abaixo), esse terreno ainda é árido para as mulheres. Ellen Gracie, a primeira ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), revela que quando se formou pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1970, não podia nem se inscrever em concursos para a magistratura. “Não era uma recusa formal”, conta a ministra, que se aposentou em agosto de 2011. “Preenchíamos os formulários e eles simplesmente eram descartados, sem maiores explicações”.
Maria Berenice Dias, primeira desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, passou pelas mesmas dificuldades. “Até 1973, todas as inscrições feitas por mulheres eram previamente negadas”, afirma. “Na minha época, tivemos que brigar para que as provas não fossem identificadas. Na entrevista de admissão, o desembargador chegou a perguntar se eu era virgem”. Ainda hoje, mesmo no STF, as magistradas precisam vencer obstáculos.
Durante o julgamento sobre a validade da Lei Maria da Penha, em fevereiro deste ano, a ministra Cármen Lúcia desabafou: “Às vezes acham que juíza desse tribunal não sofre preconceito. Mentira, sofre! Há os que acham que isso aqui não é lugar de mulher, como uma vez me disse uma determinada pessoa sem saber que eu era uma dessas.” Cármem Lúcia foi a primeira mulher que ousou vestir calças compridas durante uma sessão plenária da Corte – e isso foi em 2007.
Maria Tereza atribui essa disparidade entre os sexos ao conservadorismo. “Na defensoria pública, por exemplo, que é uma instituição mais recente, encontramos mais mulheres do que homens advogando em alguns estados”, diz. “No Ministério Público, a porcentagem feminina varia entre 40% a 50%.”
Defensoria Pública – De acordo com estudo publicado em 2009 pela Defensoria Pública da União, as mulheres já são maioria no Pará, no Paraná, em Roraima e no Tocantins. Na Defensoria Pública Estadual, a presença feminina é maior na Bahia, no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Paraná. Em números gerais, 50,1% dos defensores públicos estaduais são do sexo masculino, enquanto os da União somam 65,4%.
Ao mesmo tempo em que é uma instituição mais feminina que as demais áreas do direito, a Defensoria Pública também é uma das mais jovens. A média de idade dos defensores públicos da União é de 32 anos – e de 39 anos nas defensorias públicas Estaduais. Na magistratura, a média é 49 anos.
No Ministério Público da União (MPU), os números também são animadores. Dos 623 integrantes do Ministério Público Federal (MPF), 42,37% são mulheres. No Ministério Público do Trabalho (MPT), elas representam 49,37% dos 725 procuradores. Surpreendentemente, uma das duas subdivisões do MPU que têm mulheres no cargo mais alto é o Ministério Público Militar (MPM). Embora só 36,98% dos membros do MPM sejam do sexo feminino, Cláudia Márcia Ramalho Moreira Luz é a quarta mulher seguida a assumir o cargo de procuradora-geral de Justiça Militar. No Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), a procuradora-geral de Justiça é Eunice Pereira Carvalhido.
Consequências – Com o aumento da participação feminina, o Poder Judiciário tende a se transformar. “A mulher traz mudanças significativas para a magistratura”, acredita Sérgia Miranda, desembargadora do Tribunal de Justiça do Ceará e presidente da Secretaria da Mulher Magistrada da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). “Essa diferença pode ser notada principalmente na forma de aplicação da lei. A mulher é mais humanista”.
Para Ellen Gracie, as transformações não ocorrem de uma hora para outra, mas já existem mudanças visíveis, principalmente nas questões relacionadas ao direito de família. “A mulher tem uma visão mais sensível para esse tipo de assunto”, afirma a ministra, que se aposentou recentemente.
Se até o começo do século XXI não havia mulheres entre os onze ministros do STF, hoje há duas. Dos sete ministros titutlares do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dois são mulheres. Entre os 689.927 advogados inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), as mulheres correspondem a 44,83% (309.349). Apesar de nenhum estado brasileiro ter mais advogadas, essa realidade tende a mudar nos próximos anos: as mulheres já são maioria em grande parte dos cursos de direito.
“Infelizmente, ainda são poucas as mulheres que ocupam os cargos mais altos nos tribunais, mas acredito que seja apenas uma questão de tempo até que esse quadro mude”, observa Sérgia. “Muitas promoções são feitas pelo critério de antiguidade e os homens ainda encabeçam a maioria das listas neste ponto”.
Ellen Gracie é a prova de que as mudanças estão chegando a galope. Nomeada em 2000 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, a primeira mulher a integrar o STF afirma que não sofreu preconceito dos colegas. “Não cheguei a me sentir intimidada, porque havia estudado ou sido aluna de alguns dos ministros”, conta. “Mas sentia que me tratavam com polidez excessiva. Era algo estranho para eles”.
Para a ministra, “é uma questão de tempo até que o equilíbrio absoluto seja alcançado”. Ela fala por experiência própria. Em menos de quatro décadas, Ellen Gracie, que quando se formou não pode nem se inscrever em concursos para a magistratura, chegou à presidência da instância máxima da Justiça do país.
Conheça a trajetória de mulheres que se destacaram na Justiça
Acesse em pdf: O Judiciário de saia – ou melhor, de calça (Veja – 25/02/2012)