Em 1998, o país da América Central proibiu todas as formas de aborto e implantou uma das leis mais duras da região
(Brasil de Fato | 19/01/2022 | Por Fernanda Paixão)
Em um período de um mês, quatro mulheres encarceradas em El Salvador após sofrerem abortos espontâneos e condenadas por homicídio agravado alcançaram finalmente a liberdade. A última delas, identificada como Kenia, deixou a prisão nesta segunda-feira (17) em condição de liberdade condicional.
A jovem salvadorenha passou 9 anos na prisão e cumpria uma pena de 30 anos. Ela tinha 17 anos quando foi agredida sexualmente e engravidou. Kenia atravessou uma complicação na gestação e, socorrida pelo seu pai, foi atendida pela emergência e levada ao sistema de saúde público. Como costuma acontecer em casos de suspeita de aborto provocado no país, Kenia foi denunciada no hospital e, de lá, saiu presa pela polícia salvadorenha.
Esta é uma realidade em El Salvador desde 1998, ano em que a legislação sofreu um retrocesso ao excluir as exceções nos quais a interrupção da gravidez eram compreendidas legalmente: quando a vida da pessoa gestante está em risco; em casos de estupro; e em casos de má-formação grave do feto. Até então, o aborto provocado era considerado um delito de menor gravidade, que poderia levar a penas de um a três anos. Após a reforma no Código Penal de 1997, o aborto passou a ser considerado um delito absoluto, sem exceções, com prisão de dois a oito anos.
Retrocesso legislativo
El Salvador é um dos cinco países da região da América Latina que possui das legislações mais rígidas contra o direito de pessoas com capacidade de gestar: o aborto é penalizado em todas as circunstâncias. Possuem a mesma normativa Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Haiti.
Além disso, a violência de gênero se reflete também no aumento registrado no ano passado na taxa de feminicídios. Em 2020, aumentou 7,25% em relação ao ano anterior, totalizando 74 assassinatos a mulheres por razão de gênero em El Salvador.
Kenia é uma das mulheres condenadas e seu caso é alvo de protestos desde 2014 pela campanha “Faltam as 17” (“Nos faltan las 17“, no original em espanhol). A campanha surgiu após o primeiro caso conhecido no país, em 2006, de uma mulher condenada por sofrer uma complicação na gravidez: Karina Herrera Clímaco. Seu bebê nasceu morto, e ela foi, então, foi condenada a 30 anos de prisão.
“A história de El Salvador trouxe consequências drásticas na vida, na saúde e na dignidade das mulheres”, destaca a advogada internacional de direitos humanos e diretora executiva do Women’s Equality Center, Paula Avila-Guillén, ao Brasil de Fato. “É uma história que também nos serve como uma medida de prevenção do que pode acontecer em outros países quando se tomam decisões de leis que não têm em conta as mulheres como sujeitos de direito.”
“A penalização absoluta do aborto não só põe em risco a vida ou a saúde da mulher ou de uma criança vítima de estupro, mas que os médicos tenham a obrigação de denunciar qualquer tipo de emergência obstétrica que possa ser um aborto, independente de sê-lo ou não”, pontua a advogada. “Isso causa um alto número de mulheres denunciadas e investigadas sob pretexto de aborto mesmo em casos de perdas naturais.”
Todas as vítimas possuem algo em comum: socioeconomicamente vulnerabilizadas, essas mulheres são vítimas de uma legislação excludente que, como em qualquer país que não garante o direito à interrupção da gravidez, recai de maneira desproporcionalmente mais pesada sobre as mulheres pobres e racializadas.
Paula Avila-Guillén conheceu Kenia e a visitou diversas vezes na prisão ao longo desses nove anos. “O caso da Kenia me marcou muito. Ela era uma criança, com 18 anos recém-completados, e era muita a dor que ela carregava”, relata. “Eu a via muito afetada com toda a dureza que é estar na prisão e separada de sua família, mas ela se guiava com muita valentia, apesar da desesperança por carregar uma condenação de 30 anos. Hoje, vê-la em liberdade é quase como ver a essa menina que conheci em 2014, porque é incrível que, com apenas um dia fora da prisão, sua expressão já mudou, ela já está muito mais leve. E o caso de Kenia, infelizmente, não é diferente do de muitas outras jovens que têm suas vidas marcadas definitivamente pelo processo traumático de passar pela prisão.”
A luta pela despenalização
Em El Salvador, as organizações feministas, como a Agrupação Cidadã para a Despenalização do Aborto Terapêutico, Ético e Eugenésico (ACDATEE), têm acompanhado o caso de mulheres como Kenia, e já conseguiram a liberdade de mais de 50 vítimas do uso indevido da legislação.
Mariana Moisa é integrante da ACDATEE e destaca o desafio da militância no país pelo direito das pessoas com capacidade de gestar. “O caso de Kenia ilustra o de muitas mulheres no país”, diz. “Fundamos a Agrupação Cidadã em 2009, momento em que fomos descobrindo, aos poucos, as consequências da penalização absoluta do aborto”, conta.
“Muitas mulheres que sofrem complicações ou problemas de saúde durante a gravidez são recebidas nos centros de saúde públicos, onde aplicam o protocolo de atenção por aborto. Por isso mesmo, são classificadas como suspeitas por delito e, logo, tipificam como homicídio agravado, aumentando a pena”, observa Mariana.
A advogada internacional de direitos humanos e diretora executiva do Women’s Equality Center, Paula Avila-Guillén, destaca a importância do olhar internacional para dar visibilidade e fazer pressão sobre governos restritivos aos direitos humanos e reprodutivos como El Salvador. “Sem a cobertura da imprensa internacional que esses casos tiveram, essas mulheres não estariam livres”, afirma Paula, quem conheceu Kenia e a visitou diversas vezes na prisão ao longo desses nove anos.
Segundo o site da campanha Faltam as 17, mais de 50 mulheres conquistaram sua liberdade nos últimos anos após injustas condenações por suspeita de aborto provocado. O número que intitula a campanha representa os 17 casos acompanhados pela Agrupação Cidadã. São mulheres que atravessaram abortos espontâneos, classificados pela Justiça de El Salvador como “homicídio agravado” — tipificação que permite aumentar até 50 anos uma condenação que, pelo Código Penal, teria pena máxima de 8 anos.
“Ainda que a intenção dos legisladores não seja prender as mulheres que sofrem abortos espontâneos, quando se penaliza totalmente o aborto, qualquer emergência obstétrica pode ser considerada um delito”, afirma Paula Avila, destacan
do os índices que apontam traços em comum nesses casos. “Há uma correlação entre países de alta taxa de mortalidade materna por aborto, por aborto inseguro, alto índice de crianças grávidas e os países que possuem altas restrições em relação ao aborto”, diz.
“Os dados mostram que países como o Uruguai têm baixas taxas de mortalidade materna desde a mudança na lei [que regulamentou o aborto] e uma das mais baixas de gravidez indesejada”, ressalta. “Isso acontece porque, com a despenalização do aborto, vem também leis que incluem acesso a anticonceptivos, educação sexual e maternidades seguras. É um pacote de políticas públicas que geram um impacto positivo e dignidade na vida das mulheres.”
Edição: Thales Schmidt