No Brasil, o aborto é permitido nos casos de gravidez decorrente de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia fetal. O baixo número de procedimentos registrados no Ministério da Saúde, no entanto, evidencia as inúmeras barreiras que meninas e mulheres encontram para acessar esse direito.
Em entrevista para o Boletim Violência de Gênero em Dados, do Instituto Patrícia Galvão, a ginecologista e obstetra Helena Paro, coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas) do Hospital de Clínicas de Uberlândia (HC-UFU), reflete sobre o alto índice de gestações na infância e os avanços da implementação do serviço de aborto por telessaúde, modalidade de atendimento que aponta caminhos para quebrar algumas das barreiras que se colocam entre as mulheres e meninas que engravidam após um estupro e o acesso à interrupção legal e segura dessa gestação. Ao falar sobre as vantagens do serviço por telessaúde, a médica – que integra o Comitê de Aborto Seguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras e a Global Doctors for Choice/Brasil – explica que “o protocolo tem contribuído para desmistificar e desestigmatizar o aborto como um tratamento muito seguro para as meninas e mulheres em situação de violência sexual”.
Dra. Helena, dados do Ministério da Saúde revelam que, do total de crianças nascidas em 2019, cerca de 19 mil eram filhas de meninas de até 14 anos. Na sua avaliação, que fatores fazem com que a gravidez precoce tenha índices tão elevados no Brasil?
Helena Paro: Acredito que um dos principais fatores seja a normalização da violência patriarcal, fazendo aqui o uso desse termo cunhado pela bell hooks. E falo de violência porque qualquer ato sexual com menor de 14 anos é considerado estupro de vulnerável, tanto pelo Código Penal como pelo Código Civil, que também diz que adolescentes menores de 14 anos não têm capacidade de consentimento no sentido mais amplo. Então, o primeiro ponto seria essa questão da normalização da violência em nosso país, principalmente contra crianças e adolescentes. Outro ponto muito importante que contribui com esses índices alarmantes no Brasil é a ausência completa de políticas públicas voltadas à educação para a sexualidade desde a infância, com conteúdos e linguagem adaptados para cada faixa etária. Porque, só a partir do conhecimento, as crianças e adolescentes poderão reconhecer e denunciar as violências sofridas no âmbito familiar. E, no caso das adolescentes, elas também precisam ter acesso ao conhecimento sobre métodos contraceptivos, que é uma forma de prevenir a gravidez na adolescência. Então, a educação para a sexualidade é muito importante desde as fases mais iniciais da infância e adolescência, porque no momento em que as meninas e garotas passam a reconhecer a violência – que estão sofrendo ou sob ameaça – elas têm a oportunidade também de denunciá-la.
Em 2020, um levantamento do Portal Catarinas apontou uma média anual de 1.630 abortos por causas médicas e legais realizados no SUS entre 2015 e julho de 2020. Dra. Helena, a senhora considera que esses números correspondem à demanda real no país ou indicam que meninas e mulheres têm enfrentado barreiras para acessar esse direito no SUS?
Helena Paro: Estima-se que essa média de 1.630 abortos legais por ano no Brasil corresponda a 10% das necessidades reais das mulheres brasileiras, considerando os três permissivos legais em nosso país, que são gravidez resultante de estupro, quando há risco à vida da mulher e em casos de anencefalia fetal. E há vários fatores que contribuem para esse baixo número, sendo um deles o número insuficiente de serviços de aborto legal no Brasil. Temos um estudo publicado no Cadernos de Saúde Pública, em 2021, que mostra que apenas 200 municípios brasileiros ofereceram ou registraram abortos previstos por lei, o que corresponde a menos de 4% dos mais de 5 mil municípios no país. E, além disso, essa distribuição é desigual, concentrando-se mais nas regiões Sudeste, Sul e Nordeste, sendo as regiões Centro-Oeste e Norte muito negligenciadas. Um segundo ponto tem a ver com o desconhecimento da população a respeito do direito ao aborto legal — e isso não quer dizer que os abortos não estejam acontecendo, mas que esse desconhecimento gera uma migração para o aborto clandestino. Ou seja, mesmo as mulheres que estão enquadradas nos permissivos legais, que já são super restritivos na nossa lei, migram para o aborto clandestino, muitas vezes realizado de forma insegura — nem sempre um aborto clandestino é inseguro, mas mulheres mais vulneráveis, mulheres pobres e pretas, têm mais chances de recorrer a um aborto clandestino inseguro por falta de recursos. Isso, inclusive, tem a ver com o conceito de “injustiça reprodutiva”. Então essa média anual de 1.630 abortos legais deve representar um décimo da real necessidade do país considerando esses três permissivos legais. E é preciso reforçar que, nos casos previstos em lei, se a mulher assim desejar, ela pode interromper a gravidez de maneira segura em um serviço público de saúde, com profissionais da saúde.
Pela experiência do Nuavidas, de que forma o aborto por telessaúde tem contribuído para enfrentar essas barreiras e garantir às vítimas de estupro seu direito de interromper uma gestação decorrente da violência sofrida?
Helena Paro: Eu vejo que o protocolo tem contribuído para desmistificar e desestigmatizar o aborto como um tratamento muito seguro para as meninas e mulheres em situação de violência sexual. Essa desmistificação e desestigmatização atingem não somente a sociedade – através da percepção das mulheres que se sentem muito seguras e satisfeitas com o tratamento feito em casa –, mas também os profissionais de saúde que não tiveram a oportunidade de formação em direitos humanos, em evidências científicas e em aborto. Então, esses profissionais começam a enxergar a potência do tratamento auto administrado pela própria mulher em segurança. Eles vivenciam e observam na prática a segurança do tratamento. Acho que esses são os principais pontos em que o serviço por telessaúde tem contribuído. Em relação ao acesso, ainda temos muito a trabalhar, porque há um ano e meio estamos com o protocolo parcialmente implementado, ou seja, a menina ou mulher ainda precisa vir ao serviço de saúde para ter o primeiro acolhimento, assinar todos os papéis e levar a medicação para casa. Talvez, se conseguirmos avançar e implementar também nos outros hospitais essa modalidade de tratamento em casa, mas feito integralmente à distância, com o envio da medicação pelos Correios, acho que aí, sim, vamos conseguir melhorar o acesso das mulheres, para que elas não tenham que viajar até os cerca de 60 serviços de referência em aborto legal que hoje devem estar de fato ativos no país. Se mais serviços passarem a dispor do protocolo de atendimento integral por telessaúde, aí teremos um grande potencial para melhorar o acesso ao aborto legal e seguro para as meninas e mulheres brasileiras.
Sobre o Boletim Violência de Gênero em Dados
Realizado com apoio do Consulado da Irlanda em São Paulo, o Boletim Violência de Gênero em Dados divulga mensalmente uma seleção de estatísticas e dados de estudos realizados por órgãos governamentais, institutos de pesquisa e organizações da sociedade civil, sobre as diversos tipos e formas de violência contra as mulheres, com curadoria da equipe do Instituto Patrícia Galvão. Para receber o boletim por e-mail, inscreva-se neste link.