Somente a Copa do Mundo de 2022 chancelou a presença feminina nos estádios do Catar, abrindo caminho também para as torcedoras iranianas, alvo de restrições no país de origem para acompanhar os times in loco. Mesmo no Brasil, separado por quase 12 mil km de distância da sede do torneio mundial de futebol, elas ainda enfrentam muitos desafios para conseguirem ser as donas da bola. Nos 21 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres, Conselho Nacional de Justiça (CNJ) destaca trabalho que garante mais espaços para o gênero feminino no futebol.
Após identificar que apenas 14% do público total do campeonato estadual era composto por mulheres, a Federação Paulista de Futebol lançou, em 2020, a campanha “Elas no estádio”. Em Porto Alegre, a presença delas nas arenas de futebol recebe o apoio do Poder Judiciário há mais de uma década.
Mudança de comportamento
“No Rio Grande do Sul, fazemos um trabalho de prevenção à violência em relação ao gênero feminino que, no estádio, tem sua extensão”, explica o juiz Marco Aurélio Martins Xavier, titular do Juizado do Torcedor e Grandes Eventos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
O magistrado considera que a presença delas bem como de crianças no estádio tem a capacidade de melhorar o comportamento do público masculino. “Trabalhamos na conscientização dos torcedores de que as mulheres têm que ser protegidas e não se pode conceber qualquer forma de violência contra elas”, aponta.
Desde que começou a ir aos estádios, ainda na infância, o juiz lembra que via e ouvia ofensas às mulheres. Segundo ele, essa violência deixou de ser naturalizada nas arenas gaúchas. “Graças a este trabalho, esta questão não existe mais. O estádio também é lugar de mulher. Elas têm que ter o seu espaço preservado”, defende.
Ele ressalta que, no ambiente das arenas, as mulheres estão em situação vulnerável e os homens podem se aproveitar. “É aí que o poder público precisa entrar, como acontece nos ônibus, no transporte público”, compara.
Desta forma, o Estado atua nos dois vieses, o da prevenção e o da punição dos desvios de comportamento, por meio de um protocolo pelo qual o policial retira os envolvidos e os leva para o juizado. Os estádios contam ainda com mulheres atuando no policiamento bem como uma infraestrutura de atendimento por advogado.
O juiz relata que certa vez uma repórter que cobria a torcida de um dos clubes foi ofendida e registrou a ocorrência, tendo o homem sido julgado, condenado e encaminhado para fora do estádio, enquanto o jogo ocorria.
Cobertura esportiva
Jornalista esportiva, Carina Ávila sabe bem o que é ser assediada neste ambiente ainda predominantemente masculino. Somente no Campeonato Brasileiro de 2019, passou por duas situações constrangedoras no Mané Garrincha, em Brasília. Em uma delas, foi beijada no ombro por um torcedor enquanto fazia uma entrada ao vivo. Em outra, estava gravando uma entrevista na arquibancada quando recebeu um beijo no pescoço. “Eu não sabia se interrompia a entrevista, se gritava com ele, se ia atrás. O que eu podia fazer?”, questiona.
O ápice dos constrangimentos veio a acontecer em 2018. Enviada à Espanha para acompanhar a torcida do Real Madri durante o jogo contra o Liverpool que aconteceria em Kiev, na Ucrânia. Carina recebeu a missão de gravar um boletim de um minuto que seria veiculado em salas de cinema brasileiras. Mas não conseguiu concluir o trabalho. Tentou durante duas horas, mas era sempre interrompida.
Em 2021, resolveu editar o material e publicou nas redes sociais o vídeo com as tentativas, que viralizou. “Quando eu chego sozinha em um lugar com a câmera aí já vem muitos homens em cima da gente. Uma mulher sozinha é como se estivesse ali à disposição deles”, lamenta.
Desde sempre, relata ela, precisou provar que entendia de futebol para ser aceita no meio. Na infância, a prova de fogo para poder jogar bola com os meninos costumava ser explicar o que é um impedimento. Na profissão, ela continua sendo testada pelo público masculino: “Quando um homem erra, é porque é incompetente, porque não se preparou, não é imparcial ou está favorecendo algum lado. Quando uma mulher erra, culpam o nosso gênero”.
Por isso, sempre se sentiu pressionada a nunca falhar. “Eu sabia que se eu errasse não ia cair somente em cima de mim, mas em todas as mulheres”, disse a jornalista, que não esquece a “chuva de críticas” contra a narradora Renata Silveira quando iniciou o trabalho na TV aberta. “Estão o tempo inteiro querendo dizer que esse espaço não é para nós”, acredita.
Para Carina, a saída para mudar a cultura machista no futebol é dar espaço e voz para mais mulheres. “Hoje em dia já é comum a gente ligar a televisão e ver um jogo comentado por uma mulher. É algo que está sendo naturalizado. Vai chegar um momento em que será supernormal ligar a TV e estar passando um jogo de campeonato feminino”, acredita.
Sonho das meninas
A treinadora Camilla Orlando viu seu amor ao futebol nascer na infância. “Eu me apaixonei pelo futebol como uma criança brasileira”, narra. O interesse pelo esporte cresceu ainda mais com as Copas de 1994 e 1998: “O Brasil estava em um momento muito bom do futebol e eu sempre jogava com meus amigos no intervalo”, relembra.
Ela acredita que, mesmo contando com o apoio de familiares para os estudos, eles não viam no futebol uma oportunidade de vida para ela. “Eu sempre quis provar que futebol podia me dar alguma coisa. Então eu me formei nos Estados Unidos com uma bolsa”, relata.
Camila sonha em retomar um trabalho realizado com meninas que vivem nas comunidades do Itapoã, Fercal e Paranoá, na capital federal, para encorajar mais meninas a ingressarem no futebol. Os treinos precisaram ser interrompidos com uma mudança de Camilla para Porto Alegre.
A treinadora aconselha as garotas a verem que o futebol oferece várias oportunidades, além do trabalho como atleta. “Estamos abrindo o caminho. E abrir o caminho realmente não é fácil. Gostaria de deixar essa mensagem para as meninas: para que elas insistam, para que lutem não apenas por si mesmas, mas pela próxima geração”, afirmou Camilla.