Nós, organizações e pessoas que assinam a presente nota, nos manifestamos pelo arquivamento do inquérito policial e de representação protocolada na OAB/SC para investigar a legalidade da atuação das advogadas, Daniela Félix e Ariela de Melo Rodrigues, em favor de uma menina de 11 anos que buscava garantir o seu direito ao abortamento legal em Santa Catarina.
Na última terça-feira, 20 de junho, o jornal The Intercept Brasil em conjunto com o Portal Catarinas publicaram uma reportagem em que descreviam recentes acontecimentos que caracterizam violação dos direitos humanos e das prerrogativas de Daniela Felix e Ariela Melo Rodrigues, advogadas inscritas no quadro da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de Santa Catarina. As violações vivenciadas pelas advogadas se dão por sua atuação na defesa dos direitos humanos de meninas e mulheres, em um contexto de criminalização do direito ao aborto legal e perseguição a profissionais que defendem esse e outros direitos sexuais e reprodutivos. Esse caso é exemplo real do risco que correm todas as defensoras que atuam em temas tão fundamentais como esse.
Em 2022, Daniela e Ariela atuaram como advogadas no caso de uma criança de 11 anos, residente no estado de Santa Catarina, que, grávida em decorrência de estupro de vulnerável, buscava ter acesso ao direito ao aborto legal. Apesar de preencher os requisitos legais para o procedimento, a menina enfrentou diversas violências para acessá-lo.
Uma dessas violências foi denunciada pelos veículos The Intercept Brasil e Portal Catarinas, em reportagem publicada no dia 20 de junho de 2022. Segundo a reportagem, uma juíza e uma promotora, durante audiência judicial destinada a discutir a manutenção de medida de acolhimento institucional da menina, tentaram dissuadir a menina a realizar a interrupção da gestação, mesmo que ela e sua mãe concordassem com a realização do aborto legal. . A reportagem exibia trechos da audiência judicial que revelavam a conduta inadequada das autoridades judiciais.
A denúncia das violências institucionais e do constrangimento sofridos pela menina foi fundamental para cessar a sequência de violações que ela vinha sofrendo. A indignação da sociedade permitiu com que a menina finalmente pudesse acessar o procedimento.
No entanto, a denúncia também desencadeou uma tentativa de criminalização das pessoas envolvidas na garantia dos direitos da menina, dentre elas os profissionais de saúde, as jornalistas que assinam a reportagem e as advogadas que atuaram no caso.
Em julho de 2022, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC) aprovou a abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar supostos crimes cometidos por profissionais que atuaram no caso, ainda que os requisitos constitucionais e regimentais para abertura do procedimento, de natureza excepcional, não estivessem sendo cumpridos.
No relatório final da CPI, os profissionais de saúde, advogadas e jornalistas foram acusadas pela ALESC de compor “organização criminosa” que fomenta a prática do crime de aborto. Sabe-se que a lei autoriza, independente da idade gestacional, que o aborto seja assegurado livremente a meninas e mulheres nos casos de violência sexual, risco à vida e anencefalia (vide ADPF 54).
Após um ano de sua atuação no caso, tivemos conhecimento de que as perseguições às profissionais não se encerraram com a instauração da CPI.
Nova reportagem do jornal The Intercept e do Portal Catarinas expôs que Daniela Felix e Ariela Melo Rodrigues são investigadas e foram indiciadas em inquérito policial em trâmite perante a Polícia Civil de Tijucas (SC), para apurar possível prática do crime de violação de sigilo profissional.
O inquérito foi instaurado a partir de denúncia anônima realizada pelo Disque 100 de evidente viés ideológico, em que se requer que se apure: (i) eventual violação do segredo de justiça, em razão da divulgação dos vídeos da audiência, (ii) possível responsabilidade do The Intercept pela divulgação do caso e (iii) eventual responsabilidade cível e criminal da equipe médica. Tal denúncia foi realizada a despeito da legalidade do aborto, garantido com respaldo do Ministério Público Federal, após expedição da Recomendação nº 19/2022– GABDCE – PR/SC – MPF em 22 de junho de 2023.
Além disso, também foi apresentada uma representação perante a Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB/SC) para investigar a atuação de Daniela como advogada da criança que teve seu acesso ao abortamento legal negado.
Por meio da representação, a Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto em Defesa da Vida, a Frente Parlamentar em Defesa da Vida e Família e a Deputada Estadual Ana Carolina Campagnolo, requereram a instauração de processo disciplinar em face de Daniela Felix, para verificar possível violação de seus deveres profissionais previstos no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/94) e no Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, bem como a prática de infrações criminais, dentre elas a violação de sigilo profissional e provocação de aborto por terceiros, sem consentimento da gestante (art. 125, do Código Penal).
Todas as estratégias descritas acima – instauração de inquérito policial, a Representação protocolada perante a OAB/SC – não possuem qualquer embasamento jurídico. Não há qualquer prova ou embasamento, sob os critérios da legalidade e da razoabilidade, que justifiquem a instauração de investigação criminal, tratando-se meramente de conjecturas infundadas voltadas para a instrumentalização de instituições do Estado e da justiça criminal para fins de perseguição ideológica e de restrição de direitos já garantidos pela legislação brasileira.
A representação em trâmite perante a OAB/SC sequer preenche os requisitos de admissibilidade previstos no art. 57 do Código de Ética e Disciplina da OAB, já que apenas a narração dos fatos não permite verificar a existência, em tese, de infração disciplinar.
O que há, na verdade, é uma narrativa que busca criminalizar o acesso ao aborto legal. Não se pode permitir, nesse contexto, a criminalização das advogadas Daniela Felix e Ariela Melo Rodrigues tão somente por terem atuado no caso e defenderem os direitos sexuais e reprodutivos de meninas e mulheres.
Os fatos narrados apenas evidenciam que o verdadeiro interesse tanto da instauração de CPI, como da instauração do inquérito policial e da representação junto à OAB/SC, é o da perseguição através da criminalização da advocacia na defesa dos direitos humanos, dentre os quais figuram os direitos reprodutivos. Autoridades que promovem e impulsionam esse tipo de perseguição atuam, ao invés de garantir o acesso a direitos, de forma a impedir o cumprimento da lei.
A Constituição Federal de 1988, bem como o Código de Ética e Disciplina da Advocacia, assegura que advogadas e advogados são invioláveis por seus atos no exercício da profissão. Trata-se de garantia fundamental à efetivação da justiça, de modo que os intentos contra Daniela Felix e Ariela Melo Rodrigues representam risco não apenas à sua atividade individual na defesa dos direitos humanos, mas ameaçam todas defensoras e defensores que atuam em temas tão fundamentais quanto os direitos reprodutivos de meninas e mulheres, ainda escassamente garantidos no país.
A publicidade das condutas da juíza e promotora, Servidoras Públicas sujeitas às regras de suas Instituições e da Administração Pública, que foram evidenciadas pela matéria jornalística, em hipótese alguma poderia fundamentar qualquer punição às advogadas, não apenas pela ausência de indícios de que tenham contribuído para o acesso da imprensa às imagens, mas também pela preservação da identidade da criança e atuação em favor da garantia de seus direitos. Novamente, não há que se falar na existência de conduta ilícita, cuja responsabilidade deve ser apurada.
A divulgação das condutas violadoras praticadas durante a audiência atendem ao interesse público, já que expuseram os obstáculos ao acesso à justiça com os quais outras meninas e mulheres vítimas de violência sexual, além de defensoras e defensores de direitos humanos, podem se deparar. Entendimento contrário significa acatar que mecanismos de proteção às vítimas sejam utilizados para blindar a conduta de agentes do Estado do controle social e cercear a liberdade de imprensa, impedindo a atividade jornalística e a divulgação de fatos de interesse público.
Nesse sentido, exigimos que o inquérito policial e a representação em trâmite na OAB/SC sejam arquivados por violarem direitos de advogadas defensoras de direitos humanos que estavam atuando tão somente nos estritos limites legais, garantindo o direito de acesso de uma criança vítima de estupro à interrupção de uma gestação, nos exatos termos da lei.
Assinam esta manifestação:
- Cravinas
- Anis – Instituto de Bioética
- Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde
- Associação Portal Catarinas
- Campanha Nem Presa Nem Morta
- Coletivo Margarida Alves
- Cladem Brasil
- Ipas
- Artemis
- Instituto de Estudos de Gênero da UFSC
- Católicas pelo Direito de Decidir
- Movimento de Mulheres Camponesas
- TRANSES -UFSC
-
UFPR
-
#MeRepresenta
-
Acontece Arte e Política LGBTI+
-
Criar Brasil
-
CPM/UBM Goiás
-
Weissheimer & Ceni Sociedade de Advogadas
-
Assentamento Comuna Amarildo de Souza
- Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos, seccional Paraná
- Laboratório de Estudos de Gênero e História – LEGH – UFSC
- MMC
- Rede pela Humanização do Parto e Nascimento – ReHuNa
- Diversas feministas/MSV
- Coletivo Derlei De Luca por Memória, Verdade e Justiça
- Mara Mello Advogados
- Veredas – Estratégias em Direitos Humanos
- AbortionData
- Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares
- Cooperativa de Trabalho Comunicacional Sul
- Instituto Gentes de Direitos- IGENTES
- Rede Feminista de Juristas – deFEMde
- Regina Helena Carneiro de Mendonça
- Movimento Feminista da Diversidade
- Movimento Negro Unificado Núcleo Campo Grande
- Núcleo de Antropologia do Contemporâneo (TRANSES) – UFSC
- Fórum de Mulheres do Mercosul capítulo Brasil seção Lages
- Movimento de Meninos e Meninas de Rua de Goiás
- Marcha Mundial das Mulheres – núcleo de Lages SC
- Sinergia
- Movimento de Meninos e Meninas de Rua de Goiás
- Coletivo Puta Davida
- Instituto Marielle Franco
- Frente Mineira Legaliza pela Legalização e Descriminalização do Aborto
- Coletivo LGBT + do Gres Diversidade
- Querela Jornalistas Feministas
- Elas por Elas Vozes e Ações das Mulheres
- Rede Nacional Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos
- CEPIA
- Borges & Eleutério Advocacia
- SINTE Regional Joinville
- Conselho Local de Saúde do Bairro Jardim Paraíso em Joinville
- Renfa
- GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero
- CUT Central Única dos/as Trabalhadores/as
- Movimento Popular de Saude (MOPS) Campinas
- FRETE FEMINISTA 8M
- SINTECT SC
- Marcha Mundial das Mulheres
- Articulação Negra de Pernambuco
- Grupo de pesquisa Epistemologias Afetivas Feministas (EAF)
- Bike Polo Floripa
- Luciana Laudares Faria Alvarenga
- Revista Bá
- Movimento Parem de nos matar
- Cia da Hebe Associação de Arte e Cultura
- Agência Amazônia Real
- Rede Mulheres Negras – PR
- Arquivos Feministas
- 8M Pelotas Frente feminista antirracista e anticapitalista
- Movimento de Mulheres Socialistas PSBRS
- Nuderg
- Humaniza SC
- SEEDUC
- Brigadas Populares
- Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos
- Instituto de Estudos Políticos Mário Alves
- Flores do Outono – Iniciativa de Combate à Pobreza Menstrual em Cuiabá e Várzea Grande/MT
- Ong Nova Mulher
- Movimento Humaniza Santa Catarina
- Frente Feminista 8M Pelotas
- REDEH – Rede de Desenvolvimento Humano
- Prado Ribeiro Advogados
- Coletivo BIL – Coletivo de Mulheres Bissexuais e Lésbicas Trans e Cis
- NIGS – Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades
- Instituto Mário Alves
- Grupo de Pesquisa e Extensão Poder, controle e dano social (UFSC)
- UNEGRO GOIÁS
- Instituto Prios de Políticas Públicas e Direitos Humanos
- Instituto Memória e Direitos Humanos UFSC/UDESC
- Forum Permanente de Mulheres do Sul e Sudeste do Pará
- Coletivo de Proteção à Infância Voz Materna
- Clínica de Atenção à Violência (CAV/UFPA)
- Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia
- Núcleo Interdisciplinar Sociedade e Encarceramento (NISE – UFJF/GV)
- Associação brasileira dos advogados do povo Gabriel Pimenta
- Coletivo Mulher Vida
- Mulheres Negras Decidem
- Terra de Direitos
- Centro de Direitos Humanos de Jaraguá do Sul
- União Brasileira de Mulheres/UBM
- Abrapo