Elizabeth Vieira e Ana Elisa Bechara comentam dados e expõem a realidade de mulheres que precisam passar pelo procedimento e nem sempre encontram amparo no sistema de saúde
O aborto legal pode ser realizado em casos de estupro, risco de vida materna ou quando o feto possui anencefalia. O encaminhamento para o atendimento ainda apresenta falhas, destaca Elizabeth Meloni Vieira, professora associada sênior do Departamento de Ciclos de Vida, Saúde e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública da USP. “A maioria das pessoas, que teriam direito ao aborto legal, elas não estão informadas ou não são orientadas para ter acesso a ele. É o caso de muitas meninas menores de 14 anos que não recebem orientação dos profissionais de saúde. No caso, toda gravidez de menina menor de 14 anos deve ser orientada para acesso ao aborto legal, já que se trata de estupro de vulnerável.”
Em 2022, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública informou que houve cerca de 56 mil estupros de vulneráveis. Em 2020, foram registrados cerca de 17.500 partos de meninas entre 10 e 14 anos, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. “Então, parece que há uma incongruência com os dados, enquanto os números mostram que em 2022 foram realizados apenas 2.342 interrupções da gravidez nos serviços de aborto legal. Os serviços de interrupção da gravidez por razões médico-legais estão registrados no Datasus; são cerca de 127 e muitos deles estão alinhados em um serviço de atendimento da violência contra a mulher.
Cabe ao Estado garantir, através do Sistema Único de Saúde (SUS), o aborto à mulher, à adolescente e à criança, mas, na prática, não é bem isso que acontece e o atendimento tem sofrido muitas restrições. Ana Elisa Bechara, vice-diretora e professora titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, diz que há poucos lugares que efetivamente fazem o procedimento e ainda há dúvidas, inclusive por parte dos agentes públicos envolvidos, sobre como os casos devem ser conduzidos. “Por isso, a gente vê mulheres que muitas vezes tem que viajar mais de mil quilômetros para conseguir realizar o aborto e outros casos em que essas mulheres acabam tendo que esperar tempo demais, evoluindo contra a sua vontade a gravidez.”
Menos ou mais resistência
A professora destaca que é comum que casos de anencefalia e risco de vida para a gestante enfrentem menos resistência à realização do aborto legal do que os casos decorrentes de violência sexual. “Nos casos de gravidez que decorrem de uma violência sexual, é importante dizer que não é preciso apresentar um boletim de ocorrência policial e nem pedir autorização judicial para realizar o aborto. Basta o relato da vítima para a equipe médica e o hospital se encarrega de preencher todos os documentos necessários. Tudo isso é regulamentado pelo Ministério da Saúde, que inclusive recomenda sempre que o atendimento da mulher seja feito por uma equipe multidisciplinar formada por médico, psicólogo e assistente social. Nesses casos, por lei, o profissional de saúde deve registrar no prontuário da paciente a violência sexual e a lei determina também que haja uma comunicação à polícia dos indícios da violência contra a mulher. É importante a gente observar que, em serviços de excelência, como o caso do Hospital Pérola Byington, aqui em São Paulo, essa comunicação só é feita à polícia com autorização da paciente, o que parece muito mais adequado.”