Grupos conservadores perceberam que, mais fácil que proibir o aborto previsto em lei, é inviabilizar a sua realização por todos os meios possíveis
Um nada. Assim Carla* se sentia quando chegou ao Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte de São Paulo. Era mais um capítulo de uma longa saga. Fazia nove semanas que Carla fora estuprada depois de sofrer um golpe do tipo Boa Noite, Cinderela. Antes que pudesse se recuperar do trauma, descobriu ter engravidado. Percorreu São Paulo em busca de um hospital onde pudesse abortar. A lei brasileira permite a interrupção da gravidez em três cenários: quando há risco de morte para a mulher, quando o feto é anencéfalo ou quando a gravidez é resultante de estupro. Carla, portanto, estava amparada pela lei, que lhe permite não ter um filho contra a sua vontade.
Ainda assim, deu com a cara na porta de vários hospitais. Do Vila Nova Cachoeirinha, um dos últimos que visitou, já não esperava muita coisa. Em dezembro, o hospital, que até pouco tempo era referência em aborto legal na rede pública, deixou de oferecer o serviço. Num primeiro momento, a prefeitura, responsável pela unidade, se justificou alegando que havia pouca demanda por procedimentos de aborto. Depois, explicou que era preciso centrar esforços em outros tipos de cirurgia. O aborto não estava entre as prioridades.
Carla esperava ao menos ser encaminhada para outro hospital onde pudesse interromper a gravidez. No dia 2 de fevereiro, uma liminar judicial havia determinado que o Vila Nova Cachoeirinha deveria recepcionar as grávidas em busca de aborto e direcioná-las para outras unidades de saúde, agendando dia e horário para o procedimento, sem restrição de idade gestacional. Carla, no entanto, recebeu no Cachoeirinha apenas o endereço de outros três hospitais. O agendamento ficou por sua conta e risco.
Risco, por exemplo, de não encontrar um médico disposto a atendê-la, como havia ocorrido dias antes no Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio, mais conhecido como Hospital do Tatuapé, na Zona Leste da cidade. Disseram-lhe, na ocasião, que o ginecologista estava de férias e que, além disso, ali não se praticava aborto legal. Questionada pela piauí, a Secretaria Municipal da Saúde afirmou que o hospital oferece, sim, o procedimento, mas não explicou o motivo pelo qual ele foi negado a Carla.
Risco de exigirem um boletim de ocorrência como condição para realizar o aborto, como havia acontecido no Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, também na Zona Leste. Por lei, o B.O. não é pré-requisito para aborto em nenhuma circunstância. Mas é comum que médicos inventem a regra. Dias depois, no Hospital da Mulher, na região central de São Paulo, Carla ouviu a mesma exigência. Dessa vez, ela só queria fazer uma ultrassonografia. De tanto insistirem, Carla de repente se viu numa viatura com dois policiais rumando para a Casa da Mulher Brasileira, onde funciona uma Delegacia da Mulher.
Desnorteada, debulhou-se em lágrimas. Em seguida, telefonou para o Projeto Vivas, que auxilia meninas e mulheres a acessarem os serviços de aborto legal no Brasil e no exterior. Carla é advogada, mas não conseguiu fazer a lei valer para si mesma.
“Está muito, muito difícil em São Paulo”, lamenta a advogada Rebeca Mendes, que acompanhou a saga de Carla. Mendes é uma das fundadoras do Vivas e foi a primeira brasileira a requisitar ao Supremo Tribunal Federal a prerrogativa de abortar legalmente e em segurança, mesmo seu caso não se enquadrando nas três hipóteses previstas em lei. O pedido, protocolado em novembro de 2017, não foi aceito. Mendes foi abortar na Colômbia.