As duas maiores economias das Américas – Estados Unidos e Brasil – exercem enorme influência nos mais diversos temas que estão em debate no mundo. A história recente mostra que há inúmeras semelhanças que nos aproximam daquele país, não só do ponto de vista econômico, mas também político. Tanto lá como aqui, o ano de 2024 será marcado por eleições decisivas em pautas que podem mudar a realidade do direito das mulheres. O acesso ao aborto e à saúde reprodutiva embalam discursos fervorosos contra e a favor.
Nos Estados Unidos, o direito ao aborto foi um dos temas presentes na convenção do Partido Democrata, em que Kamala Harris foi oficialmente escolhida como candidata à presidência. Tanto Harris quanto o presidente Joe Biden e outras lideranças reiteraram seu compromisso com a defesa dos direitos das mulheres, incluindo o aborto garantido por lei, em seus discursos. A recente decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, que, após a indicação de juízes conservadores por Donald Trump, restringiu o acesso ao procedimento, reforçou a urgência desse debate.
Kamala Harris, conhecida por seu ativismo em prol dos direitos individuais, já enfrenta uma avalanche de fake news e táticas sujas, resultado da polarização política que contamina o debate público, lá como cá. Grupos conservadores e de extrema-direita tentam normalizar uma narrativa que não disfarça seu sexismo ressentido e posições reacionárias e incitando uma guerra cultural, contra uma narrativas progressistas do campo democrático em especial em questões defendidas por mulheres e demais defensores de justiça social e racial. Grupos de “supremacistas masculinos” que proliferam na internet e buscam ampliar seus discursos junto a eleitores. No caso do aborto, conservadores e de extrema-direita lançam mão de fake news com discursos apelativos, insensatos e desinformados, que visam fortalecer comportamentos racistas, homofóbicos e sexistas atingindo a pauta do direito à saúde sexual e reprodutiva.
Mudando de continente, apesar da descriminalização do aborto em países de tradição católica como Argentina, Colômbia, Uruguai e México, no Brasil, o aborto parece, apesar da relevância do tema, um assunto inexistente nos debates em torno das eleições municipais que se aproximam. Prefeitos, vereadores e outros agentes públicos locais fingem ignorar que têm papel fundamental na garantia de serviços de saúde e na implementação de políticas públicas que respeitem os direitos reprodutivos das mulheres.
Não custa lembrar que o direito legal ao aborto no país está preso a uma legislação arcaica de 1940, que criminaliza a prática, exceto em casos de estupro ou risco à vida da mãe. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal incluiu dentre as exceções o direito ao abortamento de feto anencéfalo. O efeito dessa limitação de direitos é uma tragédia cotidiana, especialmente para mulheres mais pobres, com menor escolarização, vulnerabilizadas em razão de raça e etnia, entre outros marcadores de desigualdade: Cerca de 800 mil passam por abortamentos inseguros todos os anos, das quais 200 mil recorrem ao SUS para tratar as sequelas de procedimentos malfeitos. Considerando a subnotificação, o número pode chegar a um milhão de casos por ano.