O estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública estimou que cerca de 23 milhões de mulheres com 16 anos ou mais sofreram violência ao longo da vida provocada por parceiro ou ex-parceiro íntimo
A edição 2025 da pesquisa “Visível e Invisível”, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, alerta sobre a presença do conjunto de violências que teria ilustrado parte da vida de parcela significativa de brasileiras. Por meio de entrevistas, o estudo estimou que cerca de 23 milhões de mulheres com 16 anos ou mais sofreram violência ao longo da vida provocada por parceiro ou ex-parceiro íntimo. Os resultados gerais apresentados pela pesquisa jogam luz sobre o regime de silenciamento associado às realidades violentas de meninas e mulheres, urbanas ou rurais.
Assim como apontam alguns estudos, nos casos de feminicídio, além de parte expressiva das vítimas não terem contado com medidas protetivas de urgência, algumas sequer haviam registrado denúncia sobre violência pretérita por ocasião de seus assassinatos. Em suma, violências não notificadas significam fenômeno não identificado. Assim, se o problema não existe, não há o que se responder – complicador diante da possibilidade de prevenção dos crimes de feminicídio.
Nesse rumo, mecanismos importantes para a compreensão da dimensão do fenômeno são os boletins de ocorrência e inquéritos policiais, uma vez que oferecem boa parte do histórico e das informações sobre a configuração dos crimes de feminicídio íntimo. Durante minha pesquisa de doutorado, que resultou em tese defendida em meados de 2023, expus a realidade silenciada de mulheres, predominantemente negras, empobrecidas e com baixo grau de instrução, assassinadas por parceiros ou ex-parceiros íntimos entre os anos de 2016 e 2020 em municípios do nordeste mineiro.
Foram histórias que invisibilizaram anos de sofrimento, tanto das mulheres quanto dos demais componentes dos seus respectivos núcleos familiares. Dentre os episódios marcados pela brutalidade indicativa da ocorrência pretérita de violências, parte majoritária foi perpetrada em cenários rurais ou de municípios de pequeno porte com características histórico-culturais e socioeconômicas bastante similares. Ao pesquisar processos judiciais e Registros de Eventos de Defesa Social, pude acessar dezenas de histórias de mulheres assassinadas, o que me proporcionou a oportunidade de ter ideia da dimensão do problema. A nomeação foi feita de forma fictícia.
1.Safira foi encontrada “com uma faca cravada no peito”, conforme registro de 8 de março de 2016. Seria o único apontamento de violência, não fosse o relato da véspera, que dava conta de que Safira tinha sido agredida diversas vezes pelo companheiro, além de ter sido forçada a praticar sexo com ele. Em detalhada narrativa, a vítima descreveu violências sofridas ao longo do tempo, mas pareceu ser tarde demais. Não foi o suficiente para atuação estatal que pudesse salvá-la.
2.Ao lado de Ametista, já sem vida, um punhal e um facão. Teria sido ferida no pescoço e no tórax e recebido punhaladas pelas costas. O autor, seu ex-companheiro, estava inconformado com o fim do relacionamento e queria reatar o vínculo.
3.Caída ao solo, Violeta. Seu companheiro teria aguardado as crianças irem para a escola para então assassiná-la com golpes de faca. Em seguida, cometeu autoextermínio, pendurando-se por “um pedaço de fio de espessura larga, na janela do quarto […]”. Familiares confirmaram que o autor dizia escutar vozes que o orientavam a matar a esposa. Não acreditavam que ele pudesse fazer algo dessa natureza.
4.Mesmo separada, Amarílis morava numa casa no mesmo terreno do ex-parceiro. Ela foi assassinada com golpes de faca. Em um dos cômodos da casa, a guarnição policial encontrou o corpo do autor pendurado pelo pescoço por uma corda amarrada no telhado.
5.Numa estrada vicinal, Esmeralda foi morta na presença de dois filhos adolescentes. Vivia ameaçada pelo ex-companheiro, que, além de manter casos extraconjugais, causou-lhe intenso sofrimento psicológico. Esmeralda tinha 34 anos e residia na zona rural. O autor não aceitava o fim do relacionamento.
6.Já no perímetro urbano, Lis foi assassinada pelo companheiro com várias facadas. Pelo que consta, o autor ficou insatisfeito com a […] qualidade e quantidade de comida preparada pela vítima para o jantar do casal” (Trecho da denúncia do Ministério Público, 2016). A defesa definiu estratégia baseada na persistente construção de que o réu tem perfil trabalhador, provedor da família, cuidador dedicado de filhos que não eram dele, além de ser fazedor das vontades da esposa, que, ingrata, não agradecia a ele por isso.
7.Sem anúncio, Margarida foi assassinada pelo seu ex-namorado com um golpe de faca no pescoço enquanto ambos, sentados lado a lado no interior de uma viatura policial, eram encaminhados até a delegacia. O autor/réu, pessoa conhecida na cidade, sem antecedentes criminais e “boa pessoa” […] teria instalado uma câmera no banheiro da casa de Margarida. O equipamento captou também imagens da sua criança, motivo pelo qual a mãe decidiu prestar queixa. O fato ocorreu a cem quilômetros da delegacia mais próxima. Já no perímetro urbano do município de destino, o autor sacou uma faca que estava escondida e golpeou Margarida na região da traqueia, que veio a óbito por asfixia.
Estes são apenas alguns dos casos reais que demonstram que crimes de feminicídio íntimo podem ser evitados. No entanto, não sendo possível obter pistas ou evidências sobre o sofrimento de uma mulher em razão de violência doméstica provocada por parceiro íntimo, dificilmente ela será acolhida e protegida pelo Estado. Tal proteção está, na prática, condicionada à formalização de uma denúncia/relato que provoque a intervenção pública.