(Correio Braziliense) Prevenção, a palavra-chave
Silvia Aparecida Domingues de Almeida tem 48 anos é uma vencedora na luta contra a aids, doença que contraiu em 1994. Nesses quase 20 anos, ela foi de um extremo ao outro na relação com a enfermidade. Passou pela depressão quando recebeu o diagnóstico. Aos poucos, encarou a realidade e hoje é uma ativista do movimento de prevenção da doença, que tem dezembro como mês de referência no mundo inteiro. Silvia de Almeida é assistente de responsabilidade social da mineradora Anglo American, onde começou a trabalhar em 1974, como telefonista. Nessa função, Silvia é coordenadora dos programas da empresa de prevenção da doença. Em 2010, foi uma das protagonistas do documentário Positivas, que conta histórias de sete mulheres portadoras do vírus. De 2002 até 2008, Silvia foi coordenadora do Projeto Toque de Mulher, com oficinas e exposição de fotografias no Grupo de Incentivo à Vida (GIV), onde iniciou seu ativismo. Ela também é membro do Movimento Nacional de Cidadãs PositHIVas. Para ela, o fato de a doença estar sob controle é bom, mas também tem o seu lado negativo. A seu ver, houve, por parte tanto do governo quanto da sociedade, um relaxamento em relação à prevenção. Para Silvia, a prevenção, mais do que o medicamento, continua a ser a chave do sucesso dos programas de combate à aids.
Como foi o momento em que a senhora descobriu que era portadora do vírus da aids?
Entrei na Anglo em 1974, como telefonista. Em 1994, descobri que meu marido estava doente de aids. Entre os vários exames que fez, acabou fazendo o de HIV e deu positivo. Era uma doença muito nova e a gente não tinha muita informação sobre o assunto. Tive que contar isso na empresa e o que eu não sabia era que ela tinha uma política de aids, fruto de sua atuação também na África do Sul, onde dava atenção aos empregados que eram portadores do HIV. A empresa começou, então, a comprar, para mim, os medicamentos que havia na época. Fui beneficiada com essa política e consegui me fortalecer. Em seguida, entrei para uma ONG que cuida de pessoas portadoras, fiz terapia e, nesse caminhar, fui me sentindo mais forte para abrir minha sorologia para todas as pessoas que eram meus colegas de trabalho. Em 2004, estava segura para começar a fazer palestras sobre a prevenção da aids. Fui percebendo, então, a importância de as pessoas terem informação sobre o assunto. Isso aconteceu porque, com o tempo, ficava cada vez mais forte a ideia de que era preciso informar as pessoas sobre os riscos que elas também corriam. A informação tinha que chegar a outros segmentos da população, pois a possibilidade de contrair a doença não era mais só das pessoas daquele grupo inicial. Qualquer um, independentemente da classe social e nível socioeconômico, também podia pegar o vírus.
Qual sentimento a senhora teve no momento em que descobriu que era portadora do HIV?
Foi muito difícil porque naquela época a incidência da aids entre as mulheres era muito pequena. Eu não estava no grupo de risco, que era formado por pessoas que tinham uma vida mais, digamos, promíscua. Para mim, foi um choque porque eu não me enquadrava em nenhum dos grupos e estava com meu marido havia 10 anos. Foi muito difícil entender o que estava acontecendo.
Como é lidar com a aids? A senhora pensou em desistir?
Lidar com a aids foi uma coisa meio complicada no início. Primeiro, porque a doença trazia a mancha de que alguma coisa de errado havia acontecido na minha vida. Eram muitos os questionamentos pessoais, além do fato de que eu tinha que lidar com a doença. O diagnóstico de aids é muito difícil de ser aceito. Além disso, quando iniciei o tratamento com o coquetel, era como se a doença tivesse se materializado. O primeiro passo do tratamento foi muito difícil, porque as drogas eram muito fortes e davam efeitos colaterais muito desgastantes. Eu tinha muita náusea, diarreia, além do mal-estar mesmo de depender daquela quantidade enorme de medicamentos para viver com uma doença difícil. Ao mesmo tempo, tive que trabalhar muito o lado emocional, no sentido de entender que eu tinha uma doença que precisava ser tratada, porque, se não fizesse isso, iria abrir brechas para questões emocionais e psicológicas que acabariam tendo uma complexidade muito maior. Acabei superando isso com o apoio dos amigos, da empresa e da terapia. Tudo isso acabou me fazendo ficar mais forte. E, quando a pessoa é forte, o vírus é que tem que se submeter a você, não você a ele. Até hoje não tive uma doença oportunista decorrente da aids. Tomo o remédio regularmente e amo a vida. Tenho certeza de que, cada vez mais, as pessoas precisam de informação para se livrarem do preconceito e do estigma e também – o que é muito importante – para se protegerem da doença.
Quando os primeiros casos de aids apareceram havia um grande preconceito em relação às pessoas que eram portadoras do vírus. A senhora diria que houve uma dução desse preconceito ou a situação é a mesma de 20 anos atrás?
Ainda existe muito preconceito. A diferença é que, hoje, esse preconceito é mais velado. O que ocorre é que as pessoas se sentem meio na obrigação de não serem muito preconceituosas. Mas isso não impede que elas tenham medo ou queiram viver afastadas de quem tem a doença. E, ainda hoje, vejo as pessoas sendo segregadas em seus locais de trabalho. Se souberem que determinado bebedouro foi utilizado por uma pessoa que tem aids, elas vão evitar de utilizá-lo. Muitas pessoas também não vão se sentar em um banco onde se sentou uma pessoas com aids. Ainda existe um preconceito muito grande em relação à doença, mas as pessoas são constrangidas a não exporem seu preconceito, porque, hoje em dia, é feio ter preconceito. Elas dizem não ter preconceito, mas é preciso ver até que ponto isso é verdadeiro.
Mas muitas pessoas que têm aids também se escondem. Isso não contribui para aumentar o preconceito?
Acho que muitas pessoas portadoras do vírus acabam criando um autopreconceito no sentido de se esconderem ou esconderem uma virologia que não é o que de mais importante elas trazem. Às vezes, elas se escondem como se a doença fosse o que elas têm de pior. Mas é apenas um problema de saúde o que elas têm. Por isso, acredito que, enquanto as pessoas continuarem se escondendo, a gente acaba fortalecendo o preconceito contra a doença.
Quando o coquetel de medicamentos começou a ser utilizado, os efeitos colaterais eram muito fortes. Isso melhorou ao longo do tempo?
Hoje nós temos muito mais drogas contra a aids. Eu tomo 15 comprimidos por dia. Os efeitos colaterais são mais amenos hoje, mas não é fácil ser prisioneira de um tratamento que você tem que fazer para levar a vida adiante. A gente cansa de ouvir dizer que, como hoje há o tratamento contra a doença, se a pessoa se infecta, não morre mais. Ok. Mas ainda é um grande peso fazer o tratamento.
A existência da medicação não teria levado muitas pessoas a relaxarem em relação à prevenção da doença?
Sim. O governo deu uma relaxada, e a sociedade também, com relação à prevenção da doença. O fato de a aids ser hoje uma doença controlada foi o que causou esse relaxamento. Por isso, é importante garantir que o governo continue investindo no tratamento e também na prevenção, porque nós ainda temos muitos desafios pela frente na questão da saúde como um todo. E esse relaxamento é muito perigoso porque as pessoas que fazem tratamento de longo prazo estão tendo uma série de problemas, como a osteoporose, o envelhecimento precoce e problemas cardiovasculares. Eu conheço pessoas que estão tendo problemas mentais; outras estão ficando deficientes físicos. O quadro continua sendo muito crítico e a gente também não tem um sistema público de saúde que suporta as doenças paralelas à aids. Por isso, quando a gente abre o diálogo com a comunidade, a gente faz com que as pessoas passem a ter um olhar mais real da importância de prevenção da doença. A prevenção continua sendo a palavra-chave, junto com a informação. Essas são as duas medidas mais importantes para que a gente consiga vencer a epidemia.
O Brasil é tido como um país que tem uma política de prevenção e tratamento da aids que é referência internacional. Como a senhora avalia isso?
As ações governamentais ainda são insuficientes. A gente faz campanhas de prevenção basicamente no carnaval e em dezembro, que é o mês dedicado às ações de prevenção da aids. Fora isso, não há programas que levem a informação sobre a doença com mais contexto para a população. Não temos uma política que, minimamente, dê um pouco de obrigatoriedade às empresas de falarem sobre a prevenção da doença e também terem ações nesse sentido. A gente conseguiu conter bastante a epidemia com a distribuição universal dos medicamentos; houve uma grande diminuição do número de mortes, está-se dando uma vida mais prolongada às pessoas que tomam o remédio, mas ainda há muita coisa a ser feita. Acho que as empresas também precisam começar a olhar a aids como um problema de saúde no local de trabalho. É mais fácil investir na prevenção do que ter um funcionário doente. É importante o empresariado pensar assim porque o empregado passa a maior parte da vida dentro da fábrica, na produção. Por isso, todas as empresas deveriam ter projetos internos de prevenção da aids.
Que conselho a senhora daria a uma pessoa que descobriu hoje que é portadora do vírus da aids?
Que ela veja a aids apenas como uma doença do corpo físico e não a transforme em uma doença moral. Essa é uma ideia que precisa ser desconstruída. A gente não pode permitir que o vírus mexa com a nossa personalidade. Temos que ter o cuidado de fazer o tratamento, mas sem deixar que isso interfira na nossa vida social. A aids, se corretamente tratada, não reduz nossa capacidade de trabalho. A partir do momento em que faço o tratamento, me sinto uma pessoa completamente saudável. Levo uma vida absolutamente normal. Trabalho o dia todo e viajo bastante também, como qualquer outra pessoa.
E a vida sexual?
Tenho um namorado, que também é portador. Já tive relacionamentos com outras pessoas e, em todos esses casos, a informação é fundamental, porque ela é que constrói o diálogo. Ela é que faz com que a outra pessoa entenda que o HIV não atrapalha o relacionamento amoroso. Nas palestras que faço, tenho procurado passar isso para as pessoas.
E para as pessoas que não são portadoras do vírus mas, por razões as mais diversas, têm um colega de trabalho ou parente que é?
Que pensem e se coloquem no lugar do outro. Conheci muitas pessoas que sofreram muito preconceito por causa da aids sem que tivessem tido a oportunidade de mostrarem verdadeiramente quem eram. O conselho que eu deixo é que a gente precisa se conhecer muito, se respeitar e também respeitar o outro. É preciso entender o contexto em que essa outra pessoa está inserida e não apenas se ela tem a doença, mas, fundamentalmente, quem é essa outra pessoa.