Para Sirlei Márcia de Oliveira, socióloga e Diretora Adjunta da Escola Dieese de Ciências do Trabalho, com a aprovação da PEC das Domésticas, uma série de questões relacionadas à permanência da mulher no mercado de trabalho pode vir à tona. Condições de ampliação da renda, valorização do trabalho no mercado e em casa, necessidade de compartilhar com a família as responsabilidades de manutenção da casa são pontos que precisarão ser repensados. Avanços nessas frentes, porém, ainda esbarram na divisão sexual do trabalho doméstico e na herança escravocrata do Brasil. Confira entrevista.
(Débora Prado, da Agência Patrícia Galvão) Ainda predomina na sociedade uma cultura de responsabilização da mulher em relação à casa, aos filhos e à família – trabalho muitas vezes invisível, não remunerado e pouco reconhecido. Essa falta de valorização se reflete na profissão das domésticas? Onde estão as raízes da falta de direitos dessa categoria até hoje?
A gente vive uma questão que é cultural e histórica e que não é um privilégio do nosso país, mas que aqui tem uma especificidade grande por termos uma tradição escravocrata. Então tem isso por um lado e, por outro, o trabalho da casa, de cuidado, limpeza e toda sorte de afazer doméstico, juntamente com o cuidado da família, sempre foi relegado à responsabilidade das mulheres. Então, nós viemos de uma trajetória onde essas responsabilidades ficaram relegadas às mulheres, que, muitas vezes, contava com o auxílio de uma escrava.
A gente passa por um processo de evolução e de mudança, onde a mulher começa a participar do mercado de trabalho e essa participação se amplia a partir da década de 1970 com diferentes características. Com a ida ao mercado de trabalho, entretanto, não há uma transformação na divisão e na forma como as famílias se organizam, e, ainda hoje, a gente pode afirmar que o grosso da responsabilidade é delegado à mulher.
Esse trabalho nunca foi valorizado, está dentro de um conjunto de responsabilidades que as pessoas, de certa forma, naturalizam e ainda vai ser necessário muito tempo e esforço para mudar esse ideário e educar os homens de maneira que eles considerem que realizar uma atividade doméstica não significa sair da categoria de homem, ele pode e deve dividir o trabalho com a mulher.
E, como esse trabalho que a mulher realiza não é valorizado, isso se transfere também para a forma como a própria mulher empregadora enxerga esse trabalho: ela vê como valorizado o trabalho que ela faz fora de casa. Tanto a dona de casa que realiza parte do trabalho percebe que, do ponto de vista da família dela, ela não tem respeito e valorização, como, muitas vezes, isso se transfere pra trabalhadora doméstica.
A PEC garantiu que hoje as trabalhadoras domésticas tenham os mesmos direitos de outras categorias: isso nada mais é que a correção de um grande erro grande cometido na constituição de 1988, que ampliou os direitos das domésticas, mas as diferenciou dos outros. O trabalho doméstico é um trabalho, isso precisa ser reconhecido. Ele é essencial para a reprodução da sociedade, tanto é que se eu não faço esse trabalho, eu preciso de outra pessoa para fazer.
No âmbito da família, a PEC pode colocar mudanças na divisão de responsabilidades?
Acho que a PEC coloca um elemento: a realização do trabalho doméstico tem um custo. Isso talvez faça com que os homens e mulheres passem a olhar para essas atividades com outra preocupação. Além disso, como garantir determinados direitos vai ter um custo, isso vai afetar possibilidade que algumas famílias apresentam na contratação de uma trabalhadora.
Se para garantir os direitos previstos por lei, uma família tiver que diminuir a quantidade de dias trabalhados, por exemplo, essa discussão sobre a divisão das tarefas pode vir à tona e ser revista. A maioria das mulheres tem o desejo de compartilhar essas responsabilidades. Então, é possível sim que se coloquem em debate os papéis de homens e mulheres na família, e eu espero que isso aconteça.
Os setores que foram contra a aprovação da PEC – alegando a necessidade da contratação do trabalhador doméstico, mas a falta de capacidade para pagá-los com todos os direitos garantidos – deveriam reivindicar políticas públicas, como vagas em creches?
Do ponto de vista do aparato social, a gente precisaria de creche e escola em tempo integral para que essas mulheres que vão pro mercado de trabalho possam ir com certa tranqüilidade, sabendo que seus filhos vão ser cuidados e educados. Além disso, a gente precisaria de espaços de lazer também. Eu acho que a gente vai começar a pressionar por isso.
Mas, na verdade, as mulheres que mais necessitam desse aparato social são as de renda mais baixa, porque as mulheres que têm um rendimento maior resolvem a questão do cuidado dos filhos do ponto de vista individual – ela tanto pode pagar uma empregada quanto pode pagar uma boa escola pro filho. As mulheres de baixa renda são as que mais precisam desse aparato social.
Temos um déficit de vagas em creches que, se não me engano, está em torno de 10 milhões. As mulheres de baixa renda precisam recorrer a uma série de outras estratégias para garantir que seus filhos sejam cuidados – um vizinho, uma amiga, o filho mais velho. As de classes mais altas eu ainda tenho dúvida se elas vão pressionar por esse tipo de aparato, mas talvez elas possam questionar seus próprios salários, exigir a valorização do seu trabalho no mercado.
Com a aprovação da PEC, a gente traz a tona todas essas questões que estão relacionadas à permanência da mulher no mercado de trabalho: condições de ampliação da renda, valorização do trabalho no mercado e em casa, necessidade de compartilhar com a família as responsabilidades de manutenção da casa, etc. Mas, vem também à tona uma reação da classe media de desrespeito e desvalorização do trabalho por conta dessa herança escravocrata que eu mencionei, afinal, muitas pessoas tem condição de pagar o registro em carteira e não o fazem – por que?
Quais os desafios que a mudança na relação trabalhista com a empregada doméstica coloca para a sociedade brasileira e em especial para as mulheres?
O maior desafio é considerar que a trabalhadora doméstica é uma trabalhadora como outra qualquer, elas mesmas falam isso. Qual a diferença do trabalho que elas desenvolvem do que um pedreiro, um vidraceiro, uma recepcionista, seja lá quem for, desenvolve?
Não adianta as pessoas dizerem que é um trabalho desenvolvido dentro de casa, que é uma relação de confiança, que a trabalhadora doméstica é parte da família – isso nada mais são que tipos de subterfúgios para poder transformar uma relação de trabalho numa relação de exploração.
Nesse momento, a sociedade está saudando uma dívida em relação à exploração e ao desrespeito com o trabalho dessas mulheres. O desafio que fica é buscar garantir os direitos dessas trabalhadoras. Isso não é simples e talvez leve as mulheres a fazerem outras disputas, como a de exigir também mais respeito pelo trabalho desenvolvido no mercado, de melhorar o rendimento, brigar por mais aparatos sociais, batalhar em uma determinada categoria para ter um auxilio creche, etc.
Ou seja, todas as mulheres, não só as domésticas, vão pensar também a relação trabalhista delas no mercado de trabalho. Além, claro, de ter que redesenhar os atuais arranjos familiares da responsabilidade pelo cuidado da casa e da família.
Você mencionou o papel das empresas nesse cenário, poderia falar um pouco mais do papel do setor privado na tensão entre trabalho doméstico e remunerado?
Para as mulheres se manterem no mercado de trabalho e garantirem condições mínimas de igualdade em relação aos homens, as empresas exigem que ela se dedique muito mais e de maneira quase exclusiva, praticamente full time.
Essa jornada extensa dessas mulheres não é dupla, é tripla: ela tem que trabalhar, tem que cuidar da família e da casa, e ainda tem que se qualificar muito mais que o homem para garantir as mesmas condições no mercado de trabalho. Ela tem que provar e afirmar o tempo inteiro a sua capacidade para poder competir em condições de igualdade com os homens se desejar a ascensão profissional.
A partir do momento que as empresas passarem a perceber que a responsabilidade pela casa e família é de homens e mulheres, então, a necessidade de faltar eventualmente, chegar mais tarde, não poder viajar a qualquer momento vai ser mais aceita e isso vai facilitar a vida da mulher. Essa é uma construção a ser feita: os homens precisam ser considerados tendo as mesmas responsabilidades para reprodução social que as mulheres. E os homens que estão em cargo de liderança precisam estar sensíveis a essa questão.
Aí vamos ter que discutir auxílio creche também para os homens, uma licença paternidade maior, etc. E isso tiraria uma sobrecarga de responsabilidades que hoje estão relegadas a mulher.
E é preciso lembrar que mulher trabalhadora doméstica também tem filho, também tem família e, portanto, também precisa ter as condições de conciliação entre essas duas esferas de trabalho garantidas.
Existem propostas de redução da jornada de trabalho no Brasil de 44 horas para 40 horas semanais. Políticas públicas nesse sentido poderiam contribuir para aliviar a dupla jornada de mulheres brasileiras?
A redução é fundamental para homens e mulheres, mas óbvio que tem efeitos diferenciados para ambos por todas essas questões que estamos discutindo. O trabalho hoje é extremamente estafante, exigente do ponto de vista da produtividade, então, uma jornada de 40 horas semanais já é suficientemente esgotante. Reduzir é pensar na possibilidade de garantir melhores condições de vida e de saúde, e tem inclusive efeitos sobre a produtividade desse trabalhador. Isso é importante independente da PEC.
Agora, se temos a redução para homens e mulheres e ainda passamos a compartilhar melhor as responsabilidades domésticas, aí sim a mulher poderá liberar tempo para se dedicar ao próprio cuidado, ao próprio bem estar – ela poderá ler um livro, ir ao cinema. Ela vai separar um tempo que é necessário para ela mesma, de cuidado dela, e não substituir as horas a menos na jornada do mercado simplesmente por mais trabalho doméstico.