Mesmo sob risco de morte, jovem salvadorenha não pôde fazer aborto seguro no tempo certo
(O Estado de S. Paulo) A ligação não era um convite, mas uma intimação. “Você precisa embarcar imediatamente. Beatriz corre risco de morte e tentaremos convencer a Corte Suprema de El Salvador a mudar a decisão contrária ao aborto.” Até então, Beatriz era uma mulher sem rosto cuja história me mobilizava pelo sofrimento; naquele instante, passou a ser parte de minha vida. Imaginei sua solidão em uma cama de hospital, longe do marido e do filho de 1 ano – o lúpus ameaçava a sobrevida de seu corpo grávido, os rins anunciavam falhar. A voz ao telefone era gentil, mas se postulava como uma ordem: especialistas falariam aos juízes da Corte Suprema no julgamento dali a dois dias. Eu deveria me manter em silêncio sobre a viagem. Sob a credencial de especialista em bioética, meu dever era traduzir o óbvio em argumentos éticos. Ao final da ligação, uma pergunta me perturbava: no que acreditavam os que sentenciavam Beatriz à morte?
Saí à procura de seus argumentos. O primeiro que encontrei como porta-voz dos direitos do feto foi o arcebispo de São Salvador, José Luis Escobar. Sua voz recitava o mantra do medo: “Nos preocupa que o caso dessa jovem seja a porta para legalizar o aborto em El Salvador”. O aborto é um absoluto moral segundo a Constituição Federal daquele país, um dos cinco da América Latina com leis tão restritivas, após uma reforma conservadora em 1999. A prática é proibida em todas as circunstâncias. A morte ou o parto seria o destino daquela mulher confinada ao hospital.
Encontrei um país dividido: ou se estava do lado da Igreja Católica ou contra ela. A excomunhão era uma ameaça franca ao burburinho político. Não sei se por prudência ou por arrogância, a corte indeferiu a participação dos especialistas. Isso foi no dia 10 de maio. Somente no dia 3 de junho Beatriz se submeteria à cesárea para não morrer grávida.
A peregrinação de Beatriz pelas autoridades teve início quando ainda estava com 13 semanas de gestação, logo após ter recebido o diagnóstico da malformação letal no feto. Nessa fase da gravidez, o aborto teria sido um procedimento médico de baixo risco para sua saúde e, possivelmente, realizado com medicamentos. Entre as vozes internacionais a pressionar El Salvador estava Juan Méndez, relator da ONU sobre tortura, que declarou a urgência de o país rever a legislação de aborto.
O caso perdeu-se pelas cortes locais e alcançou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que optou por um caminho ambíguo no pronunciamento – sustentou que El Salvador deveria evitar danos irreparáveis à vida e à saúde de Beatriz, mas evitou afirmar o direito ao aborto como medida para salvar sua vida. A espera foi torturante para Beatriz, mas um alento para um país amedrontado pelo dogma. A mesma ciência incapaz de acalmar os espíritos que acreditam que células recém-fecundadas são uma vida inviolável é que demarca a fronteira entre aborto e parto. Beatriz não soube como resistiu à espera sem sentido; era preciso superar a barreira das 20 semanas de gestação para o procedimento médico mudar de nome. Com 27 semanas, submeteu-se a uma cesárea e a uma ligadura tubária. O feto sobreviveu cinco horas fora de seu útero.
Não conheci Beatriz. Nunca vi o seu rosto, só ouvi sua voz. Beatriz gravou um depoimento emocionado em que choramingava “eu quero viver pelo meu outro filho”. Era um pedido de socorro de uma mulher desesperada e desencarnada pela maternidade: ser mãe era o que a animava a viver, mas também o que justificava a sentença de morte imposta pelo Estado. Beatriz nem sequer se imaginava digna de viver por si mesma – seu pedido de socorro era pelo filho. Imagino-a uma mulher refém do próprio corpo, estrangeira no país que já a marginalizava pela pobreza. Agora, é mártir de uma história que não escolheu viver em um corpo doente, marcado pela lei e pelo pecado. Perturba-me imaginar como será a vida de Beatriz após sua saída do hospital.
Os grupos religiosos a descrevem como uma mulher mãe de dois filhos: o que espera seu acolhimento e o que foi enterrado como atestado da inutilidade da espera. Nessa longa jornada até a cesárea, planejou-se levar Beatriz para o México ou Espanha, países que a acolheriam como refugiada em procura da sobrevivência por um aborto seguro. A vida concreta de Beatriz é o que existe antes e depois dessa triste história. Imagino que ela esteja se preparando para voltar à vida comum de uma mulher pobre do interior de El Salvador, um dos países mais miseráveis da América Central – casa, família e trabalho voltarão a ser sua rotina. A mártir nacional, a mulher que acendeu a ameaça da excomunhão, será esquecida por quem se lançou no seu caminho como defensor da vida do feto. Mas Beatriz não é um dogma, é uma mulher concreta. Beatriz não é uma assassina, apenas queria manter-se viva. Ela sentiu medo, suplicou pela vida e esperou. Aos 22 anos, é uma sobrevivente.
* DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO
Acesse em pdf: Refém do corpo, por Debora Diniz (O Estado de S. Paulo – 08/06/2013)