(O Estado de S.Paulo) A sexta-feira, 25 de janeiro de 2013, Dia da Congregação no mundo muçulmano, marcaria o segundo aniversário da queda do ditador Hosni Mubarak. Como dezenas de milhares de compatriotas, Hania Moheeb, jornalista de 42 anos, se dirigiu à Praça Tahrir, no centro do Cairo, para o seu segundo protesto do dia. Estava disposta a lutar pela liberdade e pela democracia no Egito, mas também por uma bandeira que lhe é cara: a igualdade de gêneros.
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“Senti de imediato que havia uma má vibração no ar, que não havia apenas pessoas que queriam protestar. Decidi ir embora, mas precisava encontrar uma pessoa e, para não perder tempo, atravessei o centro da praça”, relata. Então Hania viveu o mesmo pesadelo pelo qual 19 outras mulheres passaram naquela noite.
“Comecei a ouvir gritos na multidão e fui cercada por um grupo”, ela relata. “Não entendia nada, até que dezenas e dezenas de homens que me apertavam e me impediam de mexer começaram a arrancar minhas roupas.”
O longo martírio, de 35 a 45 minutos em que sofreu violências sexuais em pleno centro do Cairo lotado de manifestantes, se repete. No Egito, todos os testemunhos convergem para o mesmo tipo de violência vivida pela jornalista Lara Logan, correspondente da rede de TV CBS, a primeira a dizer publicamente ter sido atacada em 11 de janeiro de 2011.
Graças ao relato da sul-africana, o mundo começou a descobrir o horror dos ataques e estupros em massa na Praça Tahrir, que voltaram a acontecer nos protestos de 30 de junho e 1º de julho e deixaram pelo menos 91 vítimas, em cálculos da Human Rights Watch.
O que pouco se é diz é que o espetáculo de barbárie da Praça Tahrir é apenas a ponta do iceberg da violência contra a mulher no Egito – onde a revolução sexual ainda não aconteceu. Dados de ONGs locais indicam que 83% das mulheres confirmam já terem sido vítimas de agressões ou de assédio sexual no país.
Ao longo dos últimos 10 dias, o Estado ouviu vítimas de estupros na praça Tahrir, feministas, ativistas de direitos humanos, ONGs e sociólogos para tentar entender o fenômeno. Entre os relatos, estão histórias de perseguições nas ruas, insultos em público, discriminação constante, maus tratos e, claro, agressões sexuais.
Não bastasse, o Egito é o recordista mundial de mulheres que sofrem excisão – a mutilação sexual por amputação do clitóris. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2008 indicam que pelo menos 50% das egípcias com idade entre 10 e 18 anos passaram pela “cirurgia”.
Nos arredores de Luxor, a 700 quilômetros ao sul do Cairo, esse porcentual chega a 99%, tornando epidêmicos problemas como hemorragias graves, cistos repetidos, riscos de reabertura da cicatriz durante o parto e dores – em lugar de prazer – no ato sexual.
A discriminação e o menosprezo são tão graves e enraizados que em 2012 Azza al-Garf, do Partido Justiça e Liberdade, o braço político da Irmandade Muçulmana, defendeu com todas as letras o fim da proibição legal à mutilação, sob o argumento de que se trata de uma “cirurgia estética para embelezamento” da mulher. Detalhe: Azza é mulher, é deputada e uma das únicas nove exceções entre 479 homens na câmara.
Além de pregar a mutilação feminina, a parlamentar nega que haja perseguição sexual e defende mais rigor na lei – já draconiana – de divórcios no país.
De acordo com Madiha El-Safty, socióloga especializada em questões de gênero da Universidade Americana do Cairo, no Egito, essa situação vinha se agravando durante o governo do presidente deposto Mohamed Morsi, representante da Irmandade Muçulmana – movimento islâmico moderado, mas não tanto assim.
“No governo da Irmandade, não houve nenhum tipo de condenação e nem mesmo de recriminação aos homens envolvidos em gangues de estupros, nem estavam assegurados os direitos protegendo mulheres contra mutilações sexuais praticadas em nome de crenças religiosas”, diz a docente, que apoiou o golpe de Estado.
Para intelectuais e militares feministas, um dos problemas do Egito é que a violência e a discriminação sexual não são responsabilidade só de uma religião, mas de toda a sociedade.
Oficialmente, tanto a maior autoridade sunita do mundo, Al-Azhar, quanto a igreja cristã copta, ambas com sede no Cairo, recriminam a excisão e, é claro, práticas como os estupros coletivos. Mas tais crimes continuam se repetindo.
É para lutar contra eles que mulheres como Hania e Yasmine el-Baramawy, compositora e intérprete de 30 anos, vêm falando de forma aberta sobre as violências que sofreram na Praça Tahrir.
Segundo elas – e muitas outras vítimas -, os estupros em praça pública não são só um ato sexual, mas sobretudo político. Seriam perpetrados por gangues remuneradas por grupos conservadores, com a conivência da polícia, para tentar amedrontar e dissuadir mulheres da vida política.
“Não foram manifestantes que arrancaram e cortaram as minhas roupas e me violentaram com mãos e objetos. Foram membros de grupos pagos para nos retaliar, para controlar mulheres e manter a sociedade como ela é”, diz Yasmine. Sete amigas dela foram violentadas na Tahrir, todas têm a mesma convicção. “É organizado, é um ato político. No Egito somos criadas como um objeto qualquer. E os grupos que patrocinam esses atos querem que siga assim.”
A relações públicas Mary Awaballah, de 29 anos, concorda. Chocada com os relatos de violência, ela criou uma rede de voluntários, a Tahrir Bodyguards, que tenta fazer a segurança na praça nos dias de protestos. “Para alguns egípcios, mulheres não devem ter iniciativa política, nem ação social”, diz. “Vai levar anos para mudarmos essa mentalidade, não há dúvida.”
O problema é que até aqui, diz Mozn Hassan, diretora da ONG Nazra (Olhar), essa é a revolução esquecida no Egito. “Um país que não reconhece que crimes sexuais são cometidos todos os dias ainda não está pronto para a revolução feminista.”
Acesse o PDF: Igualdade de sexos, a revolução esquecida no Egito (O Estado de S.Paulo, 14/07/2013)