(Jornal da Unicamp) Muito se fala nos efeitos que os programas de erradicação da pobreza e transferência de renda causam nas comunidades nas quais estão inseridos. Mas qual é o impacto na vida das mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF), do governo federal? Pensando nisso, a cientista social Luciana Ramirez da Cruz passou a investigar, ainda durante a graduação, o tema que originou sua pesquisa de mestrado em sociologia, defendido no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp sob orientação da professora Gilda Figueiredo Portugal Gouvêa.
O foco na cidade de Santo Antônio do Pinhal surgiu depois de Luciana realizar um trabalho de consultoria para o Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) da Unicamp. Com pouco mais de 6.500 habitantes, a cidade está encravada na Serra da Mantiqueira, no Vale do Paraíba, em São Paulo. Diferentemente das vizinhas da região, trata-se de uma cidade de passagem, sem indústrias e com agricultura incipiente. A principal fonte de renda são os serviços públicos e uma espécie de turismo eventual por conta das pessoas que se dirigem para Campos do Jordão, distante 15 quilômetros do município. Ao estudar mais a fundo a realidade social da cidade, Luciana verificou que cerca de 27% da população local (445 famílias) é beneficiada pelo Programa Bolsa Família, sem contar outros 34 programas sociais desenvolvidos na cidade. Segundo dados do censo 2010 do IBGE, 75% da população de Santo Antônio do Pinhal vive com uma renda de até dois salários-mínimos.
Gerenciado desde 2004 na cidade pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, em parceria com o Centro de Referência de Assistência Social, o Bolsa Família tem três eixos principais: a transferência de renda diretamente para as famílias, as ações complementares (como cursos profissionalizantes de acordo com a realidade local), e condicionalidades pré-determinadas (frequência escolar, acompanhamento de saúde e frequência em programas socioeducativos).
As ações complementares mais frequentes em Santo Antônio do Pinhal são as oficinas de artesanato, que buscam incentivar a geração de renda e a capacitação das beneficiárias. A ideia é que as beneficiárias possam pavimentar a saída do programa, com a perspectiva de terem a sua própria renda. Mas Luciana enxerga algumas falhas: “O valor que elas recebem do Bolsa Família e a falta de ingresso de renda por outras vias tornam difícil começar um negócio próprio, mesmo com artesanato. É um impasse do programa na cidade em outros locais do Brasil também”, afirma.
IDENTIDADE
A pesquisadora estudou as mulheres beneficiadas pelo programa Bolsa Família em Santo Antônio do Pinhal a partir de questões levantadas pelo feminismo, como a autonomia, a igualdade de gênero e a construção da própria identidade. Esse foco ocorre porque dentro do PBF a prioridade para a titularidade do cartão é das mulheres. Em quase todos os casos avaliados na pesquisa, Luciana constatou que foi a primeira vez em que as mulheres tiveram acesso a dinheiro e ao sistema financeiro sem passar pela renda de seus maridos. Para quase metade das famílias, os valores recebidos pelo programa Bolsa Família eram o arrimo. Mesmo assim, parte delas acredita que a renda principal do domicílio é a proveniente do marido, considerando o benefício como complementar ao trabalho precarizado dos homens em serviços gerais.
No entanto a prática é outra, pois elas passaram a ter condições de melhorar as condições de vida da família sem ter que negociar dinheiro com o marido. “Elas tinham falta de clareza sobre a compreensão da sua própria pobreza, mas algumas delas já chegam a falar que o dinheiro do Bolsa Família é a garantia que elas poderão contar para comer”, afirma. Quem tem melhor percepção das mudanças ocorridas em suas famílias são as mulheres que estão há mais tempo no programa, em especial por poderem pela primeira vez realizar o planejamento dos gastos familiares.
Com os valores recebidos por meio do programa, elas passaram a adquirir materiais escolares, remédios e alimentos mais diversificados, entre os quais carnes e iogurtes. Segundo Luciana, para as beneficiárias “o dinheiro do Bolsa Família é uma mudança de perspectiva quase impossível de ser dimensionada, como passar a ter condições de alimentar os filhos com carne. Boa parte dessas mulheres gasta a bolsa com alimentação para os filhos”. O que ajuda a aceitação por parte delas é a postura das gestoras do programa na cidade, que tratam como positivo a transferência de renda e seus condicionantes, além de atuarem como mediadoras de conflitos nas relações familiares. “As reuniões socioeducativas acabam se tornando espaços de sociabilidade aos quais muitas das beneficiárias nunca puderam ter acesso”, diz Luciana.
Esses encontros são parte das complementaridades realizadas pelo município com o intuito de acompanhar a situação das famílias beneficiárias, embora quase sempre apenas as mulheres participem. São discutidas questões referentes ao programa, saúde, violência doméstica e outros temas que afligem as mulheres, com esforço por parte das gestoras municipais de que elas se sentissem acolhidas e à vontade. Em Santo Antônio do Pinhal não existe transporte público e, por causa da topografia da cidade, a maioria da população mora afastada da região central, o que faz com que as beneficiadas andem distâncias de até 12 km para chegar ao local dos encontros ou então arrisquem carona com veículos escolares.
PROBLEMAS DIAGNOSTICADOS
A maioria das beneficiárias do PBF na cidade tem a perspectiva de sair do programa, com a conquista de empregos formais com carteira assinada ou com o desenvolvimento de outra fonte de renda a partir das oficinas de capacitação. O perfil das beneficiadas do município é composto de mulheres em idade economicamente ativa, com baixa escolaridade, que se tornam mães muito jovens e com dificuldade de inserção no mercado de trabalho formal. Por isso os valores recebidos por meio do Bolsa Família, em média de R$ 100,00 por família, acabam fazendo uma grande diferença no orçamento doméstico. “Muitas famílias de classe média gastam isso por final de semana para ir ao cinema e fazer compras. Para elas esse valor é para viver o mês. Receber esse valor muda completamente a vida dessas pessoas”.
A forma como está direcionado o programa acaba levando a uma reprodução da divisão do trabalho doméstico, no qual os filhos são de responsabilidade da mulher e não do homem. Para Luciana Ramirez, existe ainda a necessidade de o programa ser repensado de forma a fazer com que os homens compreendam que o PBF é para toda família, e não apenas para a mulher. Os espaços socioeducativos e a grande maioria dos cursos de capacitação são voltados para o público feminino. A realidade da assistência social de Santo Antônio do Pinhal colabora para essa situação. Existe um deficit de vagas em creches e não há nenhuma escola em período integral, obrigando as mulheres a ficar cuidando de seus filhos em casa e as impedindo de procurar um emprego em que possam melhorar as condições de vida da família.
Apesar de ser federal, o programa é descentralizado e a execução é de responsabilidade dos municípios. Falta capacitação das gestoras nas cidades, que em muitos casos depende de voluntarismo de servidores públicos que acreditam no programa e se esforçam muito mais do que os recursos disponibilizados possibilitam, usando até bens pessoais em seus trabalhos. A prefeitura de Santo Antônio do Pinhal disponibilizou cinco funcionárias de carreira para cuidarem do programa, sem dedicação exclusiva.
Luciana Ramirez avalia que, mesmo com as dificuldades de capacitação e o acúmulo de tarefas, o fato de serem servidoras públicas dá segurança e estabilidade para a realização de suas atividades e para proporem novas iniciativas para o programa ao poder executivo municipal. Mas isso não esconde a necessidade de contratar mais funcionários e melhorar as condições de trabalho.
Mesmo com os problemas, a pesquisadora acredita que o programa é positivo por exigir como condicionante o acompanhamento educacional e da saúde de toda a família, em especial dos filhos, e por tentar romper com o ciclo de miséria de geração para geração de cada família. Outro ponto destacado é a perspectiva de que as famílias beneficiárias possam construir a própria saída do programa. Ademais, os espaços socioeducativos e oficinas acabaram dando oportunidade para que essas mulheres se identificassem socialmente.
“Muitas dessas mulheres não têm noção de que estão no programa por serem pobres, mas para elas é motivo de orgulho e status ter um cartão do Bolsa Família. É um sentimento de estar incluído. Isso retira o estigma negativo da pobreza”, declara a autora da pesquisa. E um dos diagnósticos que chamam a atenção nessa pesquisa é a forma com que essas mulheres em situação de pobreza encaravam a sua situação. “Eu perguntei ‘qual a sensação que você teve ao receber o dinheiro do programa?’, e muitas não compreenderam essa pergunta. Mesmo explicando se o sentimento era de alegria, tristeza ou outro do tipo, estranharam a indagação. Essa é uma questão que chamou atenção – o fato de muitas não terem a compreensão de si mesmas. Um fato positivo é o dinheiro estar em poder da mulher. Hoje elas sorriem, falam mais e a sua autoestima melhorou”.
Publicação
Dissertação: “As portas do Programa Bolsa Família: vozes das mulheres beneficiárias do município de Santo Antonio do Pinhal/SP”
Autora: Luciana Ramirez da Cruz
Orientadora: Gilda Figueiredo Portugal Gouvêa
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Acesse o PDF: A caminho da autonomia (Jornal da Unicamp, 19/08/2013)