(Carta Capital) “O senhor está se encostando na minha cara!”, disse a mulher sentada a duas fileiras do meu assento. O homem continuou imóvel, em pé ao seu lado. Apenas acrescentou ao desrespeito um sorrisinho e a alegação de que ela, pela idade, não seria mais objeto do seu assédio. Ele não precisava ter dito nada. Pega o Metrô lotado todos os dias, respaldado pelo consenso de que ninguém reagirá quando se esfregar por aí. Mas ela falou alto e firme e ele teve de se virar um pouco.
Da estação Carioca até a Cantagalo, quando o Metrô do Rio assume sua eufemística forma “de superfície”, outros tipos como esse ainda aguardavam muitas outras mulheres. Todas sabemos disso. Por este motivo, me surpreendeu o comentário de uma jovem que disse “essa senhora, eu hein, por que não pegou o vagão das mulheres?”. Eu acompanho a discussão sobre o carro exclusivo do Metrô, a possível implantação em outros municípios, a fortuna de políticas semelhantes em outros países em que o sexismo se apresenta em graus insuportáveis. Mas não havia me dado conta, até aquele momento, de que um preço alto que pagamos por medidas desse tipo é o fato de que elas não educam.
Em um vagão de Metrô, é possível ver muito da forma como a dignidade das mulheres continua associada, de forma considerável, à figura do homem. Uma mulher provavelmente não será desrespeitada se for desinteressante para o olhar de um homem – isto é, se for feia, velha ou gorda segundo os padrões de sensualidade. Não estou dizendo que homens ditam, por exemplo, as regras de peso certo, mas que provavelmente não assediarão uma mulher que não se apresentar, aos seus olhos, atraente. Além disso, como vimos, ela poderá ser agredida com este exato argumento. Talvez acompanhada estivesse mais segura. Em todos os casos, entretanto, o eventual respeito não se deve à mulher, mas ao interesse que seu agressor tem por ela, ou à fidelidade de classe que ele manifesta por outro homem.
Vivemos, portanto, em um ambiente social em que homens agridem e desrespeitam mulheres pública e diariamente. Isto é um dado e não é fácil exigir que uma mulher não escolha se preservar em um espaço protegido. Mas a suposição de que quem não está disponível a agressão e desrespeito deve se trancar em um algum lugar precisa nos escandalizar e não provocar adesão! A garota que rumava à Zona Sul não entendeu nada quando viu a mulher reagir ao desrespeito com dignidade. Mas ambas tem uma lição a nos dar.
Desde já, me obrigo a afirmar que, quando saio com minha sobrinha, por exemplo, qualquer medida de proteção parece fazer todo sentido. Não quero ninguém encostando nela. Não quero que ela tenha, como eu tenho, a memória de que estranhos podem dispor dela. E a quero longe de outras investidas mais sutis, embora igualmente repugnantes, como as que uma moça que ainda não sentiu por dentro as alterações que seu corpo já sofreu por fora tem de experimentar quando vai à rua. Mas também quero que ela seja esperta, ciente de que nada disso é permanente e de que ela não é em si disponível. E isso minha proteção infelizmente não vai provocar.
O vagão exclusivo é uma medida que vai na contramão do que quero para as mulheres. Por definição, segrega. Promove uma limitação injusta, isto é, para dar mobilidade, restringe-a a um espaço determinado. Injusta e covarde, porque conta com a minha decisão de não estar disposta a ser agredida, humilhada, estuprada etc. quando vou e volto dos lugares na hora que eu quero, com a roupa que eu quero e sozinha. É como se eu só pudesse compor o espaço público desde que em um estado desinteressante para um homem, acompanhada por um homem, ou separada dos homens. Mas o meu problema aqui é que, talvez pior do que tudo, políticas como a dos vagões exclusivos colaboram para a fixação do machismo que, afinal, é a razão da sua criação.
Parece-me que a questão está mal posta quando pensada em termos de sermos contrárias ou favoráveis ao vagão exclusivo. Não creio que seja o caso de questionar se mulheres devem ou não ser preservadas dos horrores do convívio agressivo com homens. Sabemos onde vivemos e vivemos em um lugar hostil às mulheres. Entretanto, a última coisa que devemos fazer com a nossa preservação é torna-la instrumento da nossa submissão. Deve nos parecer impensável que, para fazer coisas elementares, como voltar do trabalho, tenhamos de nos meter num vagão só para mulheres, cobrir nossas pernas ou baixar nossas cabeças.
Não obstante, frequentemente, quem adere à medida faz a perigosa ressalva: “fazer o que, né? Vai ter sempre algum patife para querer passar a mão em mim”. Algo como dizer que reconheço os limites da política dos vagões exclusivos, mas não estou disposta a fazer nada sobre o assunto. Isso não dá.
É claro que uma medida assim saneia um problema gravíssimo, não há o que discutir. O que deve ser pensado, entretanto, é que o resolve na sua expressão mais imediata e com os resultados mais efêmeros. No vagão, só estamos preservadas de agressões por um momento. A população de homens de segunda ordem que cobre as ruas do Rio de Janeiro continuará pronta para fazer qualquer barbaridade. Além disso, uma falsa impressão de que as coisas vão bem, ou que, pelo menos, melhoraram, não vai colaborar para criar em nós mulheres a indignação necessária à radicalização do problema. E sem esta, não creio que chegaremos a uma alteração substancial na forma segundo a qual somos tratadas pelos homens.
Corremos um risco. A separação que o vagão opera não resolve o desrespeito e a agressão. Estes restam quase imaculados, protegidos pelo mesmo invólucro com que segregamos mulheres em um carro, em uma roupa, em um horário, em um endereço, ou em uma companhia. De fato, a longo prazo, seria desejável que esse tipo de prerrogativa suscitasse em todos, homens e mulheres, através de uma forma de consciência, o respeito cuja falta criou a segregação como necessidade. Mas não sabemos se será assim. Além disso, não faz muito sentido barganharmos com a liberdade. Já sabemos o suficiente, isto é, que o Rio de Janeiro tem vagão exclusivo há 7 anos e seu metrô é mais um mau exemplo que a cidade nos dá.
Se imaginarmos que o vagão exclusivo é uma solução, ou se aderirmos a ele com mansidão, o que teremos será apenas uma profusão de medidas que libertam restringindo. Estou certa de que elas farão tão pouco por nos proteger do machismo, quanto um vagão para negros ou para homossexuais faria para nos proteger do racismo ou da homofobia. Porque, não criam entre nós o sentimento de que o desrespeito merece resposta.
Não é fácil. Como todas nós, sofro quando insisto em sair e me pôr na rua da forma como acho que devo ser respeitada. Mas não estou disponível à decisão masculina de me respeitar ou não. Não vou conceder nada. Não uso vagão exclusivo, porque seu preço é muito alto. Aquela garota do metrô me ensinou isso. E com a mulher aprendi que quero estar à altura da minha liberdade. Quero unir a minha voz à dela.
Paula Campos Pimenta Velloso é doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-Rio
Acesse o PDF: A educação da segregação (Carta Capital, 20/11/2013)