(Opera Mundi) Apesar do avanço significativo, ela acha que ainda há bastante espaço para mudança, principalmente no que diz respeito à exigência de que a mulher trabalhe e, ao mesmo tempo, cuide da casa e da família. “Os homens que me desculpem, mas eles poderiam assumir mais tarefas domésticas!”, exclama
Inúmeras pastas com recortes de jornal e textos sobre pena de morte, reforma eleitoral e outras questões amontoam-se no chão do escritório de uma pequena casa no condomínio Carol Woods, em Chapel Hill, no estado norte-americano da Carolina do Norte. “Pego uma por dia para dar um destino aos meus 17 anos de trabalho na assembleia legislativa estadual”, conta Ellie Kinnaird, 82 anos, ex-senadora democrata que se afastou do cargo em agosto de 2013.
Ellie mora em um conjunto habitacional para aposentados, mas a decisão pelo afastamento não foi motivada pela necessidade de descanso. “Praticamente todas as leis que introduzi sobre reforma eleitoral não existem mais”, diz, referindo-se a uma lei sancionada pelo governador republicano Pat McCrory após ser aprovada pelos parlamentares do partido que dominam a assembleia estadual desde novembro de 2012 (atualmente, são 17 democratas contra 33 republicanos no Senado).
Entre diversas medidas, a nova legislação exige que os eleitores apresentem um documento de identidade com foto para votar; reduz o período conhecido como votação antecipada, em que os eleitores podem votar antes das eleições; e elimina o voto em legenda e a possibilidade do eleitor se cadastrar para votar no mesmo dia das eleições. “Essas mudanças limitam o direito ao voto, e isso não é certo”, argumenta a ex-senadora.
Quando anunciou seu afastamento no dia 19 de agosto através de um informativo – uma semana depois de McCrory sancionar a lei –, Ellie expressou seu desejo de trabalhar em um projeto para ajudar os eleitores a se cadastrarem para votar munidos de um documento com foto e de informações corretas sobre o local de votação. Segundo ela, aproximadamente quatro mil pessoas leram a mensagem; 300 enviaram cartas e e-mails oferecendo ajuda; e mais 600 se mostraram solidárias ao projeto depois da publicação do texto no Facebook.
Ao longo de sua carreira, Ellie trabalhou em prol de diversas questões ou situações consideradas por ela como incorretas ou injustas. Apesar de se mostrar humilde — “não sei se sou tão importante para ser entrevistada”, escreveu em e-mail à reportagem –, sua lista de conquistas é grande. Como senadora na assembleia estadual (1996-2013), introduziu e brigou pela aprovação de uma série de leis para acabar com a pena de morte. “Não houve nenhuma execução no estado desde 2006 por conta do trabalho que conduzi. Em 2012, nenhum júri sentenciou pena de morte”, conta, orgulhosa.
Como prefeita (1987-1996) de Carrboro, município vizinho de Chapel Hill, inaugurou um mercado para fazendeiros com o objetivo de estimular o comércio local. Também acabou com o tráfico de drogas em um bairro no qual crianças eram coagidas pelos traficantes no caminho entre o ponto de ônibus escolar e suas casas. Ellie passou a conhecer todos os traficantes. Uma noite, enquanto dirigia seu carro pelas ruas do bairro, foi abordada por um deles. Ao abrir o vidro, ouviu: “Ah, é você, prefeita!”. Aos poucos, instalou novas redes de iluminação, colocou policiais fardados em frente aos pontos de venda de droga e criou um centro comunitário. “Quando você muda o entorno, o tráfico acaba”, afirma.
O que sobrou do trabalho feito naquela época está hoje em pilhas de pastas espalhadas pela sua antiga casa, onde hoje mora um de seus filhos. Ela tem três filhos e três netos. A ex-senadora conta que só pôde ir atrás de seu grande sonho quando os filhos já tinham crescido. Depois de obter dois diplomas em música em 1953 e 1973, formou-se em direito quando já estava na casa dos 50.
Nascida no estado do Minnesota, foi influenciada pela mãe, que era música, a seguir essa carreira. “Depois que ela faleceu quando eu tinha nove anos, meu pai fez com que eu estudasse música. Não era o que eu queria, mas não podia fazer nada a respeito na época”, conta. Em 1989, quando decidiu fazer direito, os efeitos do movimento feminista da década de 1970 já podiam ser sentidos no estado da Carolina do Norte. Ellie encontrou o impulso que precisava. “O feminismo significou exatamente isso para mim: sempre quis ser advogada, então serei”, conta.
Ela lembra um dia em que andava pelo campus da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill e avistou um grupo de mulheres brancas segurando uma placa com os dizeres: “liberação feminina”. “Pensei: o que essas mulheres brancas mimadas estão dizendo? Elas nunca sofreram!”, conta. Hoje, ela reconhece a importância daquele ato. “Ele fazia parte da total reavaliação que fizemos do papel da mulher na família, na sociedade e no mundo”, lembra, ressaltando que, antes do movimento feminista, as mulheres não podiam ter conta em banco ou fazer um cartão de crédito e eram obrigadas por lei a mudar o nome depois de casarem.
Apesar do avanço significativo, ela acha que ainda há bastante espaço para mudança, principalmente no que diz respeito à exigência de que a mulher trabalhe e, ao mesmo tempo, cuide da casa e da família. “Os homens que me desculpem, mas eles poderiam assumir mais tarefas domésticas!”, exclama.
Se pudesse fazer qualquer coisa, diz, faria três: buscaria igualdade absoluta para as mulheres no que diz respeito à educação e à oportunidade de emprego; lutaria para aprovar uma declaração de direitos humanos que efetivamente protegesse as pessoas de governos tiranos; e investiria em infraestrutura, começando pela construção de estradas em países como o Afeganistão, que facilitassem a mobilidade humana. Em educação, a igualdade feminina faria com que mais crianças fossem alfabetizadas e educadas, já que a educação da mãe resulta na educação do filho.
A igualdade de oportunidades de emprego faria com que as mulheres aproveitassem seu potencial máximo, o que poderia aumentar a renda familiar. Além disso, esse processo levaria mais mulheres a ingressar no governo, o que Ellie considera fundamental para a transformação do mundo. “Nós olhamos as coisas de outra maneira. Entendemos que é preciso ajudar as crianças, e isso se reflete no orçamento e nas políticas públicas que são adotadas”, afirma.
“Não me chame de querida, dama ou menina: me chame de senadora”
Em uma das mesas de seu escritório, um broche chama atenção: “Não me chame de querida, dama ou menina: me chame de senadora”. Ellie afirma que, em algum momento, quer se aposentar de verdade (um de seus passatempos favoritos é a jardinagem). Ao mesmo tempo, conta que está envolvida em dois outros projetos com a população carcerária do estado e com justiça juvenil.
A primeira vez que ficou face à face com a pobreza foi em Chicago, logo depois que terminou a faculdade de música. Estava no metrô rumo ao sul da cidade, e viu de longe cenas das quais se lembra até hoje. “Fiquei em choque. Não acreditei que as pessoas pudessem viver daquela maneira”, lembra. Pensando naquelas pessoas, e em tantas outras que precisam de diversos tipos de assistência, Ellie, aos 82 anos, continua ativa e trabalhando.
Não imagina uma vida em que não esteja assim. É preciso compreender que os problemas do mundo são também nossos, reflete, mas também é necessário saber o que fazer com esse sentimento. “Pode-se doar para instituições de caridade, mas isso muda a estrutura? Como atacamos os problemas sistêmicos?”, pergunta, complementando: “alguém precisa fazer alguma coisa. Para mim, é como um chamado”.
Entrevista – Martha Moore
Produtora de documentário recente sobre a vida da ex-senadora Ellie Kinnaird, Martha Moore fala sobre a experiência de fazer o filme
A trajetória da ex-senadora Ellie Kinnaird foi retratada em um documentário curto exibido no Centro para Estudos em Documentário da Universidade Duke, na Carolina do Norte, em dezembro deste ano. Intitulado The Honorable Ellie Kinnaird (A honorável Ellie Kinnaird, 14 min.), o filme foi produzido por Martha Moore, produtora independente que atuou no Tennessee e hoje reside na Carolina do Norte. Na entrevista a seguir, Moore conta o que aprendeu com o filme. Para ela, a ex-senadora representa um modelo feminino que pode inspirar outras mulheres. O documentário ainda não está disponível – ele deve ser exibido em breve em festivais de filme da região.
Por que você decidiu fazer um filme sobre a ex-senadora Ellie Kinnaird?
Sempre estive ligada às questões de empoderamento feminino. Ouvi um discurso dela no condomínio Carol Woods no qual ela falou sobre o papel das mulheres na política e fiquei impressionada. Passei alguns meses pensando sobre qual ângulo poderia abordar a história dela. Quando a abordei, ela foi bastante humilde e tentou tirar o foco dela, sugerindo outras mulheres que poderiam fazer parte do filme. Insisti nela, e ela topou.
O que você aprendeu com o filme?
Em primeiro lugar, que eu nunca gostaria de atuar como senadora. Vi uma atmosfera muito conservadora na assembleia legislativa estadual. Também acompanhei diversas reuniões dos legisladores em comunidades. Foi desanimador. Não senti que eles me representam.
Você poderia dar mais detalhes sobre essa experiência?
Um dia, estava com a ex-senadora em uma reunião de uma das comissões da assembleia e havia uma discussão sobre como reverter as leis que diminuíram a incidência da pena de morte. Após as reuniões, algumas pessoas falavam sobre ela atrás dela – parecia fofoca entre adolescentes no ensino médio. Fiquei horrorizada. Ela agiu como se nada tivesse acontecendo. Acredito que ela representa o modelo de mulher de que precisamos. Como as mulheres devem lidar com situações semelhantes, que acontecem em ambientes predominantemente masculinos, e ainda ter coragem de expressar suas opiniões e defender seus ideais? É claro que há outros modelos como ela. O que precisamos fazer é procurar por eles.
Acesse o PDF: A história de Ellie Kinnaird: “não me chame de querida, dama ou menina: me chame de senadora” (Opera Mundi, 11/01/2014)