(O Globo, 02/04/2014) Uma gestante foi obrigada pela Justiça a fazer uma cesariana de emergência contra a sua vontade por considerar que a gravidez, que estava na 42ª semana, era de risco e ameaçava a vida do bebê. O procedimento foi realizado na madrugada de terça-feira em Torres, a 199 quilômetros de Porto Alegre – mãe e filha passam bem e devem ter alta nesta quarta-feira.
Adelir Guimarães Lovari, 29, sentiu dores abdominais na tarde de segunda-feira e foi atendida pela médica Andréia Castro no Hospital Nossa Senhora dos Navegantes. A obstetra recomendou o procedimento de urgência por avaliar, depois de realizar uma ecografia, que o parto natural ofereceria risco. Diante da negativa da mãe em permanecer no hospital, a médica fez com que Adelir assinasse um termo de compromisso e liberou a paciente.
A gestante queria ter o filho por parto natural porque durante duas gestações teve de dar à luz através de cesarianas. Adelir era assessorada por uma doula, espécie de parteira que acompanha toda a gravidez. Em sua página em uma rede social, postou várias vezes que não queria ter a filha por meio de cesariana.
O responsável pela 1ª Promotoria de Torres, Octavio Noronha, confirmou que recebeu as informações sobre o caso da direção do hospital e decidiu ajuizar medida protetiva em favor da criança às 23h de segunda-feira. Segundo o promotor, a obstetra acionou o Ministério Público preocupada com a saúde da mãe e da criança.
A decisão de obrigar Adelir a fazer parto cesariana foi da juíza Liniane Maria Mog da Silva. No seu despacho, ela determinou que a gestante fosse encaminhada de volta ao hospital, “se necessário com o apoio da força polícia”. A decisão foi tomada por volta das 23h30. Um oficial de Justiça acompanhado por dois PMs foi à casa da gestante à 1h30 de segunda-feira para cumprir a ordem judicial. A Secretaria Municipal de Saúde já havia tentado convencer a mulher a fazer a cesariana, sem sucesso.
— É um caso raro e extremo, com motivos expostos de forma enfática pela médica. Adotamos a medida para resguardo da vida e da saúde principalmente da criança, que estava em pé segundo o laudo médico. Não queremos ditar como deverão ser os feitos os partos daqui para a frente no Rio Grande do Sul. A opção (pelo tipo de parto) é livre, desde que haja condições – sustentou Noronha.
Em nota, o hospital justificou o pedido de auxílio ao MP destacando que “adotou todas as medidas necessárias para realizar os procedimentos corretos conforme os protocolos assistenciais”.
“A paciente fez, no hospital, exame clínico obstétrico complementado por uma ecografia obstétrica. Os exames apontaram que o feto estava em apresentação podálica (os pés apontados para o canal vaginal). Além disso, a gravidez já havia ultrapassado 42 semanas e a gestante havia sido submetida anteriormente a outras duas cesáreas. Neste caso, o parto normal é contra indicado por aumentar muito o risco de ruptura uterina e, por consequência, provocar a morte de mãe e filho. Esses diagnósticos levaram a médica responsável a recomendar a necessidade de cesariana imediata para preservar a vida da paciente e do bebê”, justifica o hospital.
A paciente deu entrada novamente no hospital às 2h40 de terça-feira conduzida pelo oficial de justiça. Segundo a nota do hospital, a gestante foi novamente avaliada, “constatando-se trabalho de parto avançado com risco iminente para o feto”. Levada à cesariana de emergência, o nascimento ocorreu às 3h10. O procedimento cirúrgico confirmou a condição de risco do bebê e da mãe, de acordo com a nota.
Adelir, que é natura de Natal (RN) e mora há dois anos em Torres, reconheceu que faltou à última consulta do pré-natal “com medo de que os médicos recomendassem uma cesariana”. Segundo ela, houve advertência no último parto, há dois anos, de que dificilmente ela poderia ter outro filho sem um procedimento cirúrgico.
Mesmo assim, disse que tanto ela quanto a filha estavam bem e criticou a intervenção policial no caso. Segundo ela, houve violência e ameaça de prisão ao marido, Emerson Guimarães Lovari.
— Estava aguardando o momento certo para ir ao hospital. Me senti roubada, sequestrada, estuprada. Me abriram de um jeito que não era para abrir e não me deram direito a uma segunda opinião. Bastava ter sido atendida por um médico inteligente que soubesse fazer um parto pélvico, se isso fosse necessário – afirmou.
A doula que acompanhava a gravidez de Adelir, Stephany Hendz, postou ameaças na sua página em uma rede social. “Hospital Nossa Senhora da Fátima (sic) e dra. de meia pataca, vocês vão se arrepender de terem roubado mais um parto dessa mulher”, diz o post da doula, com o nome do hospital errado.
Segundo a acompanhante, a pressão de Adelir estava normal (13 por 8) na tarde de segunda-feira e os batimentos cardíacos da criança eram bons, por volta de 140 por minuto. “Foi feita uma ecografia onde viram que tanto a placenta quanto o líquido estavam normais”, escreveu a acompanhante.
O marido de Adelir anunciou que vai entrar com uma ação judicial contra o hospital. A menina nasceu com 3,6 quilos e 49 centímetros e recebeu o nome de Yuja Kali.
Presidente da ONG Artemis, que milita por direitos das mulheres e está acompanhando a situação de Adelir, Raquel Marques vê o caso com preocupação:
— Essa decisão abre um precedente perigosíssimo contra a liberdade individual e a independência que temos sobre nossos corpos. O que nos chama a atenção é a crença de que uma pessoas possa se submeter a um procedimento médico à revelia. Quando demos ao Estado o poder para decidir sobre meu corpo? — disse Raquel.
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