(Débora Prado / Agência Patrícia Galvão, 07/04/2014) A socióloga e especialista em pesquisas de opinião Fátima Pacheco Jordão comenta os dados e o impacto da divulgação da pesquisa do Ipea ‘Tolerância social à violência contra as mulheres’. Na última sexta-feira (04/04), o Ipea divulgou uma errata informando que houve uma inversão dos gráficos de duas questões, sendo que o resultado de uma delas, que atribuía à vítima a culpa pela violência sofrida, causou grande surpresa e recebeu maior cobertura da imprensa, gerando também grande repercussão junto à sociedade.
Há males que vem para o bem. Se a socióloga e especialista em pesquisas de opinião Fátima Pacheco Jordão não considerasse os ditados populares extremamente conservadores, talvez pudesse resumir desse modo o equívoco cometido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) na pesquisa ‘Tolerância social à violência contra as mulheres’.
Uma semana depois da divulgação dos dados da pesquisa, o Ipea divulgou uma errata que praticamente inverte um dos dados do estudo que ganharam mais visibilidade nos últimos dias: ao invés de a maioria da população concordar com a frase “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”, a discordância total ou parcial é de 70%.
“Corrigida a troca, constata-se que a concordância parcial ou total foi bem maior com a primeira frase (65%) e bem menor com a segunda (26%)”, diz o Ipea na errata.
Infelizmente, outros dados alarmantes em relação ao tema não estavam incorretos. Ainda resta o assustador índice de um quarto da população que concorda com a frase. Outra questão apontou ainda que 58% dos entrevistados concordaram, total ou parcialmente, que “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”.
A divulgação da pesquisa no final de março motivou milhares de mulheres a postar manifestações na internet contra o estupro e contra a cultura de responsabilização da vítima pelo crime. Mobilizou ainda gestoras e formuladoras de políticas públicas, ganhando destaque no site da Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo federal e na agenda da bancada feminina no Congresso Nacional.
Neste cenário, a socióloga Fátima Pacheco Jordão é incisiva: a pesquisa do Ipea catalisou um desconforto enorme da sociedade em relação à violência contra as mulheres, que é permanente e está atingindo um novo patamar no Brasil.
“Este é um momento de mudança de referência e de patamar de questionamento na sociedade. É uma novidade porque, enquanto estas opressões eram questionadas nos EUA e na Europa nos anos 1960, no Brasil o debate foi abafado pelos anos de Ditadura Militar, que atrasaram essa mudança qualitativa na sociedade”, aponta.
Entretanto, um dado que a pesquisa esconde é, para a especialista, provavelmente o achado mais importante do estudo: a tensão crescente ante as desigualdades de gênero divide homens e mulheres.
“O grau de concordância com as frases tirada pela média de duas visões tão diferentes esconde essa contradição que, eu diria, explica um problema que estamos vivenciando: a enorme discrepância entre a visão da mulher e a do homem”, considera a socióloga.
Para Fátima, como a pesquisa tem um engajamento muito forte na questão de gênero, os dados deveriam trazer as informações desagregados por sexo – ou seja, permitir a análise da diferença de concordância ou não com as frases entre homens e mulheres.
“É justamente essa diferença que cria uma enorme tensão, porque praticamente divide a sociedade ao meio. E é justamente por isso que em 24 horas emerge uma campanha em que as mulheres se defendem, dizendo ‘eu não mereço ser agredida’ ou ‘eu não mereço ser estuprada’. Essa reação esconde os diferentes olhares entre homens e mulheres”, aponta.
Os dois Brasis do gênero
Para a especialista, existem hoje os ‘dois Brasis do gênero’, em referência à obra do sociólogo francês Jacques Lambert, que no final da década de 1950 desvendou as desigualdades existentes entre Sul/Sudeste e Norte/Nordeste.
A análise de Fátima Jordão é baseada em pesquisas anteriores ao estudo do Ipea. A pesquisa Violência e Assassinatos de Mulheres (Data Popular / Instituto Patrícia Galvão, 2013; veja box), por exemplo, captou a percepção da população mais ou menos no mesmo período em que o Ipea e traz um dado claro nesse sentido: a discordância média com a frase “Mulher que apanha é porque provoca” é de 65%. Somente entre mulheres, entretanto, essa discordância salta para 73% e entre homens cai para 57%.
No estudo do Ipea, a socióloga cita que a frase “os homens devem ser a cabeça do lar” tem 41% de concordância e 25% de discordância. “Lendo assim você pensa ‘que sociedade conservadora!’. Mas a pesquisa ‘Violência e Assassinatos de Mulheres’ traz um dado fundamental: a chance de os homens concordarem com essa afirmação é 1,7 vez maior do que a das mulheres, ou seja, há uma diferença de 70% neste caso”, analisa a especialista.
“É justamente essa diferença que explica toda essa tensão em relação à questão de gênero no Brasil, não só manifesta na violência, mas na incompreensão da mídia, do humorismo, da publicidade e em todos os mecanismos sexistas de ocultação ou de reforço da desigualdade. Esses mecanismos não consideram que há uma parcela expressiva da população feminina que não concorda com este tipo de coisa e que há outra parcela expressiva da masculina que enxerga desse modo porque quer manter as coisas como estão”, destaca.
Cultura residual é conservadora
Outro aspecto interessante e que, na avaliação de Fátima, foi pouco explorado na apropriação do estudo pela opinião pública, é a evidente contradição entre o ponto de vista factual, em que há um grande avanço, e o que capta os resíduos culturais, quase sempre bastante conservadores.
Um exemplo desta contradição está no fato de que 78% dos 3.810 entrevistados pela pesquisa do Ipea concordaram totalmente com a prisão para maridos que batem em suas esposas. Ao mesmo tempo, os dados em relação aos ditados populares muitas vezes utilizados para silenciar a denúncia da violência doméstica vão em outra direção: 89% dos entrevistados concordaram que “a roupa suja deve ser lavada em casa” e 82%, que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
“Os ditados são sempre conservadores e não estão relacionados ao conhecimento racional apreendido por uma pessoa, então aparecem as contradições”, explica. A contradição, nesse contexto, não apaga os avanços obtidos pelos movimentos de mulheres e pelas recentes políticas públicas na área, acredita a especialista.
“A sociedade não avança como num liquidificador, onde tudo aparece misturado de forma homogênea, ainda mais na questão da violência contra as mulheres, que é um dos pontos mais atrasados neste País”, considera.
Ainda assim, a reação de indignação diante do levantamento do Ipea, para Fátima, é um dado bastante animador. “A reação da população mostra que a sociedade está mais tensa do que os números indicam; esse estudo causou uma comoção que eu nunca vi nestes anos de pesquisa”, constata.
A reação, ela explica, não está vinculada ao estudo em si, muito menos ao erro cometido pelo instituto. “O avanço das mulheres fez o confronto da tensão de gênero explodir”, considera.
>> Conheça a pesquisa “Percepção da sociedade sobre violência e assassinatos de mulheres”
Uma pesquisa de opinião inédita, realizada pelo Data Popular e Instituto Patrícia Galvão, revelou significativa preocupação da sociedade com a violência doméstica e os assassinatos de mulheres pelos parceiros ou ex-parceiros no Brasil.
Além de 7 em cada 10 entrevistados considerar que as brasileiras sofrem mais violência dentro de casa do que em espaços públicos, metade avalia ainda que as mulheres se sentem de fato mais inseguras dentro da própria casa.
Para o estudo, foram realizadas 1.501 entrevistas com homens e mulheres maiores de 18 anos, em 100 municípios de todas as regiões do país em maio de 2013. Confira.