(Folha de S.Paulo, 08/04/2014) O Brasil perde por dia cinco bebês saudáveis, sem malformações, por asfixia ou problemas relacionados ao parto. Entre 2005 e 2010, o país registrou 24.210 óbitos neonatais de bebês potencialmente viáveis, ou seja, que não eram nem muito prematuros nem muito pequenos.
Com assistência pré-natal, cuidado adequado durante o parto e presença de pediatra capacitado para atender o bebê logo após o nascimento, grande parte dessas crianças teria sobrevivido. Não há relação direta entre essas mortes e o tipo de parto ao qual a gestante foi submetida –vaginal ou cesárea. Mas há indicações objetivas para cada caso.
A gestante forçada a fazer uma cesárea no Rio Grande do Sul há uma semana oferecia riscos absolutamente não desprezíveis a seu filho e a ela mesma, caso desse à luz por parto vaginal. Bons obstetras tentam parto vaginal depois de uma cesárea. Mas depois de duas, essa alternativa é quase sempre desconsiderada. Era o caso daquela gestante. O risco de rotura uterina era real. O seu filho estava saindo da fase de termo (42 semanas), e bebês pós-maduros têm maiores chances de asfixia.
A médica que acionou o Ministério Público para garantir que a mãe fosse submetida a uma cesárea considerou que tinha o dever ético de salvar duas vidas. Ela agiu do modo que entendeu ser menos lesivo à mulher e à criança, embora essa não fosse a opinião da mulher, e a criança não tivesse autonomia para decidir.
Em muitos casos similares, parece haver um muro entre a família e a equipe médica. O diálogo é precário, e a decisão acaba não sendo embasada nas condições precisas do parto. Se os riscos são suficientemente esclarecidos, se há diálogo e os subsídios médicos são explicados para a gestante, sua família e rede de apoio, facilitando a tomada conjunta de decisão, o desfecho pode ser menos conflituoso.
A OMS (Organização Mundial de Saúde) estima que, para cuidar da saúde materna, o país precisa ter pelo menos 15% de cesarianas. Os países que registram índices inferiores a este têm mortes maternas evitáveis. É o que acontece em regiões africanas e no sudeste asiático, onde o procedimento é praticamente indisponível em condições adequadas.
A OMS avalia que, do total de partos realizados num país, 15% a 30% devem ser cesarianas. No Brasil, o procedimento é adotado em 55% dos casos no sistema público e em 80%, no privado.
É verdade que é preciso diminuir esses índices absurdos, mas o raciocínio não pode ser radical. O argumento de que cesarianas favorecem planos de saúde não é tão consistente quanto uma abordagem cultural. Um bebê cujo parto foi problemático pode ter de ficar ao menos sete dias na UTI, implicando custos mais elevados do que aquele recém-nascido que em dois dias pode ir para casa com a mãe.
No entanto, difundiu-se no país o hábito exagerado da cesárea eletiva, na qual os pais marcam a data de nascimento de seus filhos arbitrariamente. A mulher brasileira em idade fértil acredita que pode escolher como se dará o parto, quando na verdade são suas condições biológicas que deveriam determinar o procedimento. A princípio, todo parto deve ser vaginal, mas com a gestação vai se vendo riscos e benefícios.
Além da imprecisão para se calcular a idade de gestação–o que implica um risco de prematuridade evitável–, a entrada em trabalho de parto libera sinais fisiológicos que desencadeiam a maturidade de vários órgãos e sistemas do bebê, em especial do sistema respiratório.
Existem métodos para identificar se há sofrimento do bebê e se há necessidade de se realizar uma cesárea. Em casos como o do Rio Grande do Sul, o diálogo mais efetivo entre a equipe médica, a gestante, a família e sua rede de apoio permitiria um desfecho que, embora pudesse ser o mesmo em termos de via de parto, fosse menos traumático a todos os envolvidos.
RUTH GUINSBURG, 55, é professora titular de pediatria neonatal da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo e coordenadora do Programa de Reanimação Neonatal da Sociedade Brasileira de Pediatria
Acesse o PDF: O sofrimento dos bebês, por Ruth Guinsburg