(Portal da Unicamp, 10/04/2014) O Brasil ainda não dispõe de uma rede integrada e eficiente de apoio às mulheres vítimas de violência, apesar dos esforços do governo federal, da Justiça e de organizações não governamentais. A grave situação foi um dos temas debatidos na quarta-feira (9) durante o I Fórum sobre Violência contra a Mulher: Múltiplos Olhares, realizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O foco dos debates, que reuniram representantes de diversas esferas de governo, academia e terceiro setor, se concentrou principalmente nas questões de violência doméstica, sexual e obstétrica.
A Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) da Presidência da República apresentou durante o Fórum as ações do governo federal de combate à violência contra a mulher. A assessora de Projetos Especiais da SPM, Luana Grillo da Silva, abordou as ações previstas no Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que orienta as políticas estaduais e municipais. Entre seus eixos de atuação estão: a garantia da aplicabilidade da Lei Maria da Penha, a ampliação e fortalecimento da rede especializada de serviços, a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos e enfrentamento à exploração sexual. “Fazendo uma avaliação depois de sete anos de implantação do Pacto, nós percebemos que um dos maiores desafios no Brasil é a articulação da rede de serviços”, afirmou Luana Grillo. Segundo ela, a falta de integração de órgão do Poder Executivo e Judiciário, principalmente, prejudica a vítima de violência, que muitas vezes não consegue o suporte necessário.
Um dos depoimentos apresentados durante o Fórum, e que teve grande repercussão, foi feito pela líder comunitária Maria do Carmo Pereira de Sousa, mais conhecida como Carmen, do Jardim Columbia, em Campinas. Ela relatou como foi vítima de todo tipo de violência desde a infância, quando foi rejeitada por pai e mãe, e acabou se tornando moradora de rua com apenas 12 anos. No Ceará, Carmen foi vítima constante de violência doméstica, chegando até a abortar uma gestação aos cinco meses após ser espancada pelo marido. Posteriormente, ela acabou vindo para Campinas como vítima do tráfico de mulheres.
Ao testemunhar diariamente as agressões contra as mulheres da sua comunidade, conhecida como Menino Chorão, que reúne 200 famílias, Carmen organizou uma rede de apoio mútuo em que denunciam e punem os agressores sem recorrer ao Poder Público. Se um homem bate na companheira, ele é punido com a exclusão das únicas atividades de lazer do bairro, o bar e o jogo de futebol. Além disso, os agressores são submetidos a uma “disciplina” que consiste em abstinência sexual pelo prazo que a mulher agredida determinar. Em casos extremos, o reincidente pode até apanhar do grupo de mulheres. “Se a gente se unir, a gente muda o mundo. Cada uma de nós tem que fazer um pouquinho para ajudar nossas parceiras”, defendeu a líder comunitária. O Fórum também exibiu vídeos (assista: 1 2) com depoimentos de vítimas de violência feitos exclusivamente para o evento.
Violência obstétrica
A violência praticada contra gestantes, antes, durante e depois do parto, ainda é pouco conhecida da sociedade, mas tem mobilizado um grande contingente de militantes em manifestações públicas e por meio da internet. A médica Simone Grilo Diniz, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), apresentou um histórico sobre a violência obstétrica e definiu termos e conceitos essenciais para a compreensão dessa modalidade de violência institucional. Segundo a médica, ela se caracteriza por “qualquer conduta, ato ou omissão por profissional de saúde, tanto em público como privado, que direta ou indiretamente leva à apropriação indevida dos processos corporais e reprodutivos das mulheres”. Esse processo resulta em ações como tratamento desumano, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, explica Simone Diniz.
A professora da USP indicou como uma das novidades no combate a essa violência a mobilização das mulheres pela internet em prol do parto humanizado, pelo trabalho das parteiras e pelo direito ao acompanhante. “Nós temos uma ativa blogosfera materna e isso tem transformado a realidade”, afirmou, citando o fácil acesso a documentos e artigos científicos que apontam, por exemplo, que a episiotomia (corte cirúrgico realizado na vagina) não deve ser um procedimento de rotina e que a ocitocina (hormônio que estimula as contrações uterinas) deve ser usada apenas como protocolo de segurança.
Carla Andreucci Polido, médica e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), criticou o chamado “modelo tecnocrático”, que vê o parto como um processo mecânico, e não necessariamente fisiológico e natural. “No nosso modelo nós geramos uma cascata de intervenções que poderia muito bem ser chamada de cascata de erros”, afirmou a ginecologista e obstetra. Essa série de procedimentos equivocados, segundo Carla Polido, se inicia com a internação demasiadamente precoce das parturientes, que leva ao uso desnecessário da ocitocina e à monitoração dos batimentos cardíacos do bebê, obrigando a gestante a ficar na posição horizontal, o que atrasaria em quase duas horas o parto. “Com isso, diagnostica-se uma falha de progressão no parto e rapidamente dirige-se essa mulher para uma cesárea, que poderia ter sido evitada se o primeiro evento da cascata tivesse sido abordado de uma forma diferente”.
Durante a palestra sobre “Práticas rotineiras em maternidade: reflexões sobre a melhor assistência”, a professora da UFSCar lembrou que a Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde recomendam um mínimo de intervenções no parto para o benefício de mãe e bebê, medidas essas respaldadas pela Medicina Baseada em Evidências. “Atualmente, nós temos uma Medicina baseada em ritos e rituais tecnocráticos, sem questionamentos, sem que o profissional tenha uma reflexão sobre aquela prática”.
O problema da falta de humanização no atendimento à mulher nas redes pública e privada foi relatado pela médica Melania Amorim, professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), que desenvolve um trabalho de sensibilização e formação de profissionais sob o modelo humanizado na rede do SUS. Em Campina Grande (PB), Melania Amorim formou uma rede de voluntários, com estudantes e profissionais formados em Medicina, Enfermagem, Fisioterapia e Psicologia, e constituiu um projeto de extensão na universidade. O projeto já contabiliza mais de 400 partos assistidos dentro dessa proposta de humanização na rede pública. “Nós temos vários plantonistas que aderiram à causa, a taxa de episiotomias vem caindo dramaticamente, nós contamos agora com recursos da Rede Cegonha para melhorar a infraestrutura, e acho que conseguimos concretizar algo que deveria ser direito de toda usuária SUS, mas que infelizmente ainda não é”, concluiu a médica, que também atua no Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira, em Recife (PE).
O I Fórum sobre Violência contra a Mulher: Múltiplos Olhares – que teve a presença de cerca de 500 pessoas no Auditório do Centro de Convenções – foi realizado pelo Fórum Pensamento Estratégico (PENSES), pela Coordenadoria Geral da Universidade Estadual de Campinas (CGU) e pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (PREAC), com o apoio da Faculdade de Enfermagem da Unicamp, do Fórum pela Humanização do Parto e Nascimento em Campinas e do SOS Ação Mulher e Família. A organização já definiu a data da segunda edição do Fórum sobre Violência contra a Mulher, em 27 e 28 de novembro, na Unicamp.
Acesse no site de origem: Fórum trata da agressão doméstica e violência no parto (Portal da Unicamp, 10/04/2014)