(El País, 02/07/2014) Ela fez o anúncio duas semanas atrás em horário nobre e os estupefatos telespectadores emudeceram. Vera Sidika, a modelo queniana que até há pouco encarnava o ideal nacional de beleza, falou na televisão sobre o processo de branqueamento de pele ao qual se submeteu dias antes em Londres. Explicou da forma arrogante e sarcástica que a fez famosa no Quênia e nos países vizinhos. “Fico surpresa com a hipocrisia com a qual os homens fingem que gostam das mulheres negras quando na verdade sempre vão atrás das brancas”, afirmou. A Kim Kardashian do continente africano, como ela mesma se define, não entrou em detalhes na entrevista concedida ao apresentador Larry Madowo, da rede pública NTV. Revelou que após pagar os 125.000 euros (379.590 reais) do tratamento, conseguiu baixar três tons de pele. Nesta mesma noite as redes sociais explodiram e no dia seguinte a imprensa de seu país qualificou de “irresponsável” e de “duvidoso exemplo”. A mensagem que encerrava sua decisão é, de acordo com muita gente, manifestadamente racista.
Em poucas horas a hashtag #BleachedBeauty (beleza descolorida, em inglês) conseguiu mais de 7.500 menções no Twitter e Vera Sidika passou de heroína a vilã em questão de minutos. Ela, de sua parte, se mostrou feliz da vida. “Estou muito feliz com minha nova imagem, necessitava de uma mudança na minha vida”, assegurou como quem acaba de sair do cabeleireiro. Wallace Kantal, jornalista do diário Daily Nation, denunciou em um artigo que Sidika “representa o novo rosto do capitalismo” porque encarna a personalidade de alguém que “não tem limites”. Kantal lamentou a “evidente crise moral e de valores na qual vivemos”, e criticou a atenção recebida pela modelo nos meios de comunicação. A celebridade mais popular do Quênia, outrora defensora da beleza natural e sem complexos, fez pouco caso dos comentários de Kantal e de todos que a acusaram de trair sua raça. “Nunca criticaram a Rihanna e a Nicki Minaj (quando clarearam a pele), e a mim sim?”, disse a modelo.
Mas no que consiste o tratamento ao qual submeteu-se Sidika? Nos últimos anos o branqueamento de pele se converteu em uma técnica de popularidade crescente em certos países. Os cremes indicados para tal fim, tradicionalmente empregados para retirar manchas de nascimento ou marcas derivadas do vitiligo – perda gradual de melanina –, também se aplicam nos casos como o da it girl. Entre os princípios ativos e os ingredientes que compõem estas misturas podemos encontrar arbutina, hidroquinona, ácido kójico, ácido azelaico e, em certos casos, também mercúrio. As concentrações de alguns cosméticos que escapam do controle das autoridades – os que são adquiridos no mercado negro – podem provocar graves danos e até câncer, conforme denunciam os especialistas.
O branqueamento de pele é uma técnica muito difundida nos Estados Unidos, muitos países da Ásia – com o Japão, Índia, Filipinas e a China na liderança – e a África, principalmente na Nigéria, Senegal, África do Sul e Togo. Trata-se de um negócio avaliado em trilhões de reais em nível global, que a Organização Mundial da Saúde tenta regular da melhor forma possível. Em um relatório publicado no ano passado, a OMS denunciou a “elevada” presença de mercúrio em alguns produtos para clarear a pele. No Quênia branquear a pele segue sendo um tema tabu, e muitas vezes os tratamentos ocorrem em clínicas clandestinas ou na parte dos fundos de centros de beleza.
A confissão pública de Sidika é uma exceção, e uma passada de olhos pelo show business servirá para constatar a mudança de tonalidade de não poucas celebridades afrodescendentes que jamais reconheceram ter-se submetido a este procedimento. A estrela pop nigeriana Dencia (vídeo em inglês), a quem muitos consideram como a “Lady Gaga” da África, há anos vale-se de seu poder midiático para vender as vantagens da pele branca. Há alguns meses lançou uma linha de produtos branqueadores chamada Whitenicious. “Podem dizer a bobagem que quiserem sobre a Beyoncé, Nicki Minaj ou Rihanna, mas sabem do que mais? Estão no topo, são campeãs, e todas clarearam a pele”, afirmou em uma entrevista recente. O argumento, extremamente simplista, explica qual é o significado que muitas pessoas dão ao branqueamento da pele: uma decisão mais ideológica que estética.
Há quem sustente que não serve de nada entrar em discussões raciais, pois no fim das contas são muitas as pessoas de raça branca que desejam ficar morenas e não seria absurdo alguém de raça negra desejar o contrário. Mas neste caso falamos de uma decisão irreversível que altera a pigmentação da pele para sempre, da forma que compararmos com um bronzeado seria ingenuidade. Apenas Vera Sidika conhece os verdadeiros motivos de sua decisão, e pelo jeito não parece disposta a deixar que ninguém a analise. Ela prefere fazer selfies.
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