(Folha de S. Paulo, 10/09/2014) Afirmar o óbvio pode ter méritos, então vou arriscar as críticas inevitáveis: duas mulheres, uma branca e uma negra, são as candidatas principais à Presidência de uma das maiores democracias do mundo.
Talvez a NSA esteja bloqueando meu acesso, mas passei a tarde procurando na mídia brasileira alguma discussão sobre gênero e raça nesta eleição e encontrei apenas um punhado de artigos. Talvez a questão do gênero seja mais fácil de explicar: mulheres brasileiras são candidatas presidenciais, não sucessivamente, nos últimos anos.
As eleições de 2010 podem ter trazido avanço maior que as de 2014. Mas a referência abrandada, mesmo que suavizada, à raça certamente se deve mais à relutância em falar sobre a divisão racial do Brasil e à persistência do mito de uma sociedade que não liga para raça.
Por que falar de raça e gênero quando há tanto mais que isso que vem azedando o humor dos brasileiros? Recessão, criminalidade, endividamento familiar, inflação, pobreza, atrofia internacional. Agora, e como nos protestos do ano passado, o crescimento de Marina como a anti-Dilma, como a favorita improvável dos mercados, energiza a discussão pública sobre o futuro do Brasil. Uma certa exuberância irracional em torno de Marina metamorfoseou o azedo em doce.
A história de Marina, do tipo que parece feita para a TV, faz com que seja difícil atacá-la. Como Barack Obama afirmou certa vez a respeito de sua própria candidatura, todo mundo pode encontrar em Marina algo no qual se projetar e se identificar. Como o próprio Brasil, Marina passa a impressão de um híbrido: ela encarna elementos múltiplos de uma identidade –mulher negra da Amazônia formada pela natureza, a doença, a pobreza, os movimentos sociais, a influência de um mártir heroico, a política, a burocracia, a democracia e, sim, Deus, ou a ideia que tem de Deus e da criação.
Muita matéria-prima moldou sua identidade. E ela forma um contraste, mas também complementa as histórias dos presidentes brasileiros recentes: acadêmico outsider exilado, reformista e arquiteto de transição; sindicalista de classe trabalhadora industrial, migrante, nordestino, democrata transformador. Após 20 anos no poder, a narrativa do PT/PSDB passou, em contraste, a encarnar os êxitos do Brasil, justamente quando eles geraram a necessidade de transformações amplas.
De fato, a visão transpartidária profundamente entranhada do progresso como o consumismo de classe média não é capaz de conduzir os brasileiros a um futuro sustentável, porque as demandas ambientais, climáticas e de recursos naturais não dão resposta satisfatória a uma pergunta que o capitalismo raramente permite: o que constitui o bastante? A candidatura de Marina, e os protestos anteriores a ela, impõem essas perguntas.
O que admiro no Brasil é que essas perguntas estão no centro da discussão. Aqui nos EUA, estamos muito longe de formular ou responder a elas. Também podemos estar a décadas de distância de ter duas mulheres de raças diferentes competindo pela Casa Branca. Lembrem-se disso quando aqueles pensamentos azedos retornarem.
Acesse o PDF: O Brasil ‘pós-racial’ de Marina, por Julia Sweig (Folha de S. Paulo, 10/09/2014)