(Jornal do Campus, 15/10/2014) Em qualquer debate saudável, todos têm o direito de argumentar e expressar suas opiniões. Na Constituição de 1988, o princípio da liberdade de expressão é citado em mais de um artigo, dentre eles o 3º e o 5º – sendo assim, portanto, um direito de qualquer cidadão, além de ser um requisito para a consolidação de uma sociedade democrática. A partir da perspectiva de que todos têm o direito a ter uma opinião, por vezes a liberdade de expressão é usada em defesa de posicionamentos preconceituosos e discriminatórios.
Em meio a essa encruzilhada, um grupo em especial sofre com o cerceamento de seus direitos: são eles as lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans, representados pela sigla LGBT. O casamento entre pessoas do mesmo sexo, a criminalização da homofobia e a alteração de nome de pessoas trans* figuram entre as muitas reivindicações desse grupo que até hoje não foram atendidas ou receberam apenas medidas paliativas, que não contemplam ao todo as necessidades existentes. A negação desses direitos resulta na marginalização dos LGBT, que é mantida pela disseminação de ideias preconceituosas.
“A liberdade de expressão acaba quando o discurso passa a pregar uma mensagem de superioridade de um grupo social ou quando ele nega a dignidade de outro grupo”, afirma Thales Coimbra, advogado especialista em direitos LGBT*. “Assim, entende-se que a liberdade de expressão no Brasil abarca debates científicos, políticos e culturais, mas não aqueles que contenham uma ideia intolerante, que pode ter ou não um tom panfletário”, complementa.
O PRECONCEITO NA JUSTIÇA
Como não existe censura prévia no Brasil, aqueles que se sentem agredidos ou oprimidos por um discurso de ódio devem buscar reparação judicial a posteriori, tanto na esfera criminal como na esfera cível. No caso específico da homofobia, há um projeto de lei do ano de 2006 que prevê a sua criminalização, incluindo-a na lei contra o preconceito. Popularmente conhecido por PL 122, ele ainda passa por embates ideológicos e burocráticos: grupos fundamentalistas alegam que, com essa inclusão, o princípio da liberdade de expressão não seria respeitado. No entanto, Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, afirma que o projeto de lei é constitucional e não fere tal princípio, já que nos próprios artigos 3º e 5º da Constituição é esclarecido que discriminação e preconceito devem ser combatidos através da lei.
Para Coimbra, “a ausência de um marco legal contra a homofobia, diferentemente do que ocorre com o racismo e a violência doméstica, permitiu que se formasse um sentimento generalizado entre as pessoas de que é aceitável a discriminação contra a comunidade LGBT”. São comuns relatos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais que não são acolhidos em delegacias de polícia, sendo muitas vezes ainda culpabilizados pela violência que sofreram. “Se [a pessoa] foi alvo de xingamentos, é porque provavelmente provocou o ofensor, ou então é porque estava exibindo afeto em público”, exemplifica o advogado.
A criminalização da homofobia ainda deslegitimaria as relativizações morais feitas por certos juízes, que hoje nem sempre condenam atos de discriminação. No entanto, é importante ressaltar que, mesmo com uma possível aprovação do PL 122, as mudanças não acontecerão de forma automática. “Se nem a tomada de consciência de direitos por parte dos LGBT é instintiva, o que dizer então da consciência de deveres, por parte dos agentes públicos?”, questiona Coimbra.
Atitudes inicialmente vistas como inofensivas, mas que por trás da névoa da liberdade de expressão apresentam uma carga extremamente preconceituosa também auxiliam a perpetuar a discriminação. Exemplos de casos como o do dia 11 deste mês, onde em uma partida entre Palmeiras e Grêmio os torcedores palmeirenses retrucaram as provocações da torcida adversária com gritos de “racista, viado”, em alusão ao episódio da torcedora gremista Patricia Moreira e do goleiro Aranha, não faltam. Ora, por que é “aceitável” responder ao racismo com homofobia?
Em janeiro deste ano, trabalhadores de um shopping na Bahia tentaram impedir que uma funcionária transexual de uma lanchonete utilizasse os sanitários femininos do local, alegando ser constrangedor encontrá-la dentro do banheiro. Ao não respeitar a identidade de gênero da funcionária, o grupo acaba compactuando com o discurso de ódio transfóbico. Toda opinião apresenta consequências, que podem ser ignoradas por vontade ou por desconhecimento. Isso não exime, no entanto, a gravidade do fato e a responsabilidade de quem proferiu o discurso. A livre expressão não pode limitar a liberdade.
O termo trans pode ser a abreviação de várias palavras que expressam diferentes identidades, como transexual, transgênero ou até mesmo travesti. Assim, para evitar classificações que correm o risco de serem excludentes, adiciona-se um asterisco ao final da palavra, transformando-a em um termo guarda-chuva, ou umbrella term: um termo englobador, que inclui qualquer identidade trans “embaixo do guarda-chuva”. O termo também pode incluir pessoas trans* que se identificam dentro e/ou fora da ideia normativa de que masculino e feminino formam um binário.
Acesse no site de origem: Quando opinião se torna discurso de ódio, por Ana Carla Bermúdez (Jornal do Campus, 15/10/2014)