(Carta Capital, 18/12/2014) Dois dias após a apuração dos votos para presidente, o Congresso Nacional derrubou o decreto presidencial que instituía a Política Nacional de Participação Social em um claro recado de contrariedade ao governo Dilma. A rejeição ao decreto, apelidado de bolivariano pela oposição, no entanto, não estava endereçada apenas ao governo, mas também dizia para a sociedade: “Eleitor participa votando e só. Não se metam”, afirma a cientista social Ana Claudia Teixeira.
Vencedora do Prêmio Capes de Tese 2014 na área das Ciências Sociais, a pesquisadora analisou o ideário de democracia participativa no Brasil, dos anos 70 até o governo Lula, pela Universidade de Campinas (Unicamp). Em entrevista a CartaCapital, Ana Claudia discute a participação e a força de setores sociais frente a grandes grupos econômicos na tomada de decisões políticas no Brasil, mencionando Belo Monte. A cientista social também analisa o conservadorismo do Congresso Nacional em meio às manifestações sociais por uma reforma política. “O Congresso tem uma visão extremamente conservadora e fechada sobre o que é democracia. É uma pena.”
CartaCapital: Muitas entidades julgaram o veto do Congresso ao decreto que pretendia criar a Política Nacional de Participação Social como um retrocesso na construção de uma democracia participativa no País? Você era favorável ao projeto?
Ana Claudia Teixeira: Eu era favorável, sim, e concordo que foi um retrocesso. Parece que o Congresso estava e está em descompasso com as demandas da sociedade. As manifestações de junho em 2013 e o debate eleitoral envolvendo a reforma política pressionam o Congresso por uma reforma e por mais abertura no processo de decisão. Os congressistas, por outro lado, reagem como se não fosse com eles. Em setembro, um plebiscito popular, não oficial, colheu mais de 7 millhões de assinaturas pedindo por uma reforma política. O Congresso ignorou.
CC: O Congresso está realmente isolado? Afinal, houve um apoio da mídia e de diversos setores sociais contra o decreto de Participação Popular, chamado de decreto bolivariano.
ACT: Vejo três razões misturadas que justificam a atitude do Congresso em relação ao decreto. Em primeiro lugar, houve má-fé durante o período eleitoral e tentou-se criar uma espécie de denúncia dizendo que o decreto era bolivariano. O decreto não tem absolutamente nada de bolivariano. Os conselhos populares na Venezuela são muito diferentes dos nossos conselhos por políticas públicas. No País, sempre tivemos instituições participativas paritárias, compostas pela sociedade civil e pelo Estado. Do meu ponto de vista, as críticas tiveram o objetivo de desestabilizar o governo Dilma antes das eleições e se transformaram no veto do Congresso posterior às eleições. O objetivo foi desmoralizar o governo.
A segunda razão é uma ignorância gigantesca. Se a mídia e o Congresso tivessem lido o decreto, eles não estariam enxergando o que estavam. Nem a expressão “conselho popular” está presente no texto do Decreto. O que o decreto promete é o reconhecimento dos canais de participação existentes, inclusive a maioria deles já regulamentados por lei. Além disso, propõe critérios mínimos para o seu melhor funcionamento e articulação.
A terceira razão é a expressão de um pensamento conservador. A minha interpretação da rejeição ao decreto pelo Congresso é de que, para os deputados, o eleitor participa apenas votando, depois a democracia fica entre o Executivo e o Legislativo. É como se o Congresso mandasse um recado dizendo: “Não se metam”. É uma visão extremamente conservadora e fechada sobre o que é democracia. É uma pena. A própria Constituição brasileira diz que a participação não se dará apenas indiretamente pelo voto, mas também se dará de forma direta.
CC: O próprio presidente do Congresso afirmou que as propostas de reforma política e combate à corrupção seriam analisadas com prioridade. Na sua opinião, a derrubada do decreto de Participação Popular representa uma contradição neste discurso?
ACT: Com certeza. Parece que os congressistas vivem em uma bolha. Não é possível que eles não se sintam minimamente corresponsáveis ou tocados. E a eleição indica que virá um Congresso com um perfil ainda mais conservador. Em resumo, eles estão se isolando e não estão percebendo a gravidade disso.
CC: O descontentamento de setores da população brasileira com o sistema político é um sinal da falta de participação direta?
ACT: É possível. Faltam muitos canais diretos de participação no Brasil. Nosso sistema político deixa a população muito à margem da tomada de decisão. Usamos muito pouco referendos e plebiscitos, por exemplo. Os canais já criados servem apenas para dar voz para quem já está organizado, para quem já representa alguém. Mas e o cidadão comum? Hoje, quem não está organizado não tem muito espaço para participar.
CC: Os últimos referendos brasileiros (o da divisão do Estado do Pará e o do Estatuto do Desarmamento) ganharam um caráter de alta polarização às vésperas da votação. Isso indica que houve má condução do referendo ou que faltou um debate político mais maduro?
ACT: A gente usa tão pouco os instrumentos de plebiscito, referendo, iniciativa popular de lei que é difícil avaliar. Isso ainda não está no DNA da democracia brasileira. É preciso fazer mais, experimentar mais. Falta debate político maduro para tudo. Sofremos muito com a manipulação e o monopólio da mídia. Então, quando temos um plebiscito ou um referendo, quem tem poder econômico e está mais bem articulado com a mídia sai ganhando. O Estatuto do Desarmamento demonstra isso. As forças para fazer um debate maduro eram muito desiguais.
CC: Faltam canais institucionais que fomentem a democracia participativa no Brasil
ACT: O que existe hoje é bastante desigualdade entre as áreas de políticas públicas. Em quase todas as áreas sociais existe algum tipo de espaço, audiência pública ou conferência acontecendo. Algumas são mais antigas, como os Conselhos de Saúde, que compõem o Sistema Único de Saúde, e outras mais recentes como é o caso das Conferências de Educação.
Agora, o que falta são canais em áreas mais estratégicas como infraestrutura, obras de grande impacto, e de decisões econômicas importantes. Hoje, a sociedade não discute o papel dos bancos públicos, como o BNDES e a Caixa Econômica Federal, não discute o monopólio nos meios de comunicação, a atuação do Judiciário e por aí vai. Ou seja, ainda existem algumas áreas do Estado brasileiro que não estão cobertas por canais institucionais.
CC: E essas áreas não cobertas são áreas-chave para a sociedade brasileira, não
ACT: Exato. São áreas em que reside o poder. Houve um investimento alto áreas sociais e não nos demos conta de que não há tantos espaços de participação em áreas econômicas. E é ingênuo pensar que as decisões das áreas econômicas não impactam as áreas sociais. O que construímos até agora é interessante, mas insuficiente. Precisamos dar outros passos.
CC: Não há como não lembrar Belo Monte e dos atritos entre o governo e construtoras com as comunidades locais. Hoje, esses canais institucionais para a participação das comunidades são muito mais consultivos do que deliberativos?
ACT: Sim. O ideário de participação no Brasil foi mudando ao longo das décadas. De um ideário mais emancipatório, nos anos 70 e 80, para uma perspectiva mais de escuta, de diálogo, de consulta. Não que a perspectiva emancipatória não esteja presente ainda, mas ela é minoritária. O que melhor explica essa mudança é o fato de o PT ter ganhado a eleição, mas não o poder. De um lado, o PT teve que governar com sua base aliada de sustentação no Congresso. De outro, teve a preocupação de governar, de dialogar com diversos grupos sociais. Por isso, houve uma multiplicação dos canais de participação no governo Lula, boa parte apenas consultivos.
É preciso ser crítico em relação a isso, mas ao mesmo tempo reconhecer que há um avanço em relação a períodos anteriores. Trazer vozes dissonantes ou minoritárias para o debate público em uma sociedade tão desigual como a nossa não é algo pequeno. Embora a palavra “escuta” seja mais fraca do que a ideia de emancipação, dos anos 70, ou mesmo de deliberação, dos anos 1990, ela ainda assim permite dar voz para quem nunca teve. A criação deste espaço de diálogo com vozes dissonantes e minoritárias é a principal razão para muitos movimentos sociais continuarem próximos do PT.
CC: No entanto, algumas das vozes dissonantes reclamam de serem negligenciadas no debate sobre determinadas questões.
ACT: Com certeza. Há uma espécie de cansaço. Especialmente em áreas em que o diálogo se dá com poderes muito fortes, como em Belo Monte. Organizam-se diversas audiências públicas, o governo se apresenta e escuta, leva o material para Brasília e se propõe a fazer o que dá. Isso é muito pouco. Ou pior, firmam-se compromissos que depois são desrespeitados. De que adianta ter discussões se os acordos não são cumpridos? Os pactos são frequentemente quebrados em caso de grandes obras de impacto social, ou ainda ocorre de setores empresariais simplesmente não quererem pactuar e aí os conselhos de políticas públicas não serem levados em conta. Um exemplo disso é o enfrentamento da população local com o agronegócio e a mineração, por exemplo. Nestes casos, as comunidades locais têm pouco poder de decisão e isso causa desgastes.
CC: E como alterar esse cenário?
ACT: Eu só vejo uma mudança para esses espaços de participação se houver mudança no cenário político como um todo. Do ponto de vista democrático, o cenário atual funciona como um tiro no pé do governo, já que enfraquece espaços de discussão e cria descontentamento com a política. A saída seria uma reforma política profunda.
Se os setores econômicos continuarem mandando nas eleições sem o fim do financiamento privado de campanha, se não houver democratização dos meios de comunicação, se não houver mais formas de democracia direta, as instituições participativas ficam muito à reboque, enfraquecidas.
CC: Esse modelo de canais institucionais para a escuta está esgotado?
ACT: É difícil fazer uma avaliação generalizada que valha para todas as áreas do País. O Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), por exemplo, foi um espaço consultivo criado no governo Lula que interferiu em várias políticas de segurança alimentar no País. Através da articulação de diversos atores, o Consea ajudou a formular políticas, pressionou o Congresso Nacional e também o governo federal para criar câmaras e espaços de discussão da sociedade civil dentro do Palácio do Planalto e, assim, produzir políticas públicas de dentro do governo. A Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (aprovada em 2012). A verdade é que depende muito de cada caso, dos atores envolvidos e do amadurecimento da própria política. Existem municípios que fizeram coisas muito importantes por meio de conselhos locais, como a construção de agendas, de monitoramento dos recursos públicos e até mesmo denúncias de má uso do dinheiro público ou do mau atendimento.
CC: A atuação do canal de participação social depende do contexto político e econômico em que ele está envolvido?
ACT: Sim, não devemos olhar para os conselhos como atores isolados, mas, sim, em seu contexto político. Na minha opinião, o problema é o sistema político como um todo. Os mesmos problemas que o Estado sofre, esses canais também sofrem. Se falta transparência ou se as informações não são públicas, como um conselho irá funcionar direito sem acesso à informação para fazer o monitoramento? É impossível.
CC: E sobre os Projetos de Lei de Iniciativa Popular, como a Ficha Limpa, por exemplo?
ACT: O instrumento de iniciativa popular de lei tem sido pouco utilizado porque é muito difícil de operacionalizar. Sem falar que é praticamente impossível checar as assinaturas depois. Além disso, pode ficar parado no Congresso por anos até que eles decidam votá-lo. Ou seja, isso não é democracia direta. Por isso, é preciso pressionar por uma reforma política que inclua mecanismos da democracia direta. Somente com a soma das duas coisas podemos dar maior qualidade para as instituições participativas já consolidadas e dar espaço para que novas ações surjam.
Marcelo Pellegrini
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