(BBC Brasil, 18/12/2014) “Ninguém da minha família votou em mim. Nem eu mesma. Vou dar voto para quem não vai ganhar?”
A declaração é da candidata à deputada estadual do Ceará Iracema Alves, que nas últimas eleições concorreu pelo Partido Trabalhista Cristão (PTC) mas não teve nenhum voto.
Em entrevista à BBC, Iracema disse que se candidatou porque queria concorrer mesmo, mas não teve como fazer campanha por um problema de saúde na família.
“Eu decidi não retirar minha candidatura porque não queria prejudicar o partido. Se eu desistisse, eles não iam alcançar a cota.”
Iracema faz referência à legislação que determina que cada partido ou coligação precisa ter o mínimo de 30% de candidatura de cada sexo e, no máximo, 70%.
Na prática, isso se traduz em uma cota feminina, ou seja, entre todos os candidatos concorrendo por determinado partido, 30% precisam ser mulheres. Em vigor desde 2012, a determinação tem como objetivo ampliar a participação feminina na política.
Candidaturas fictícias
Mas se a candidatura de Iracema pelo PTC era genuína, o mesmo não acontece com muitas outras mulheres, que viram “candidatas laranjas” apenas para que o partido cumpra a cota.
“Eu não sei se outras mulheres que não tiveram votos se candidataram só para se adequar a lei. Mas todos os partidos fazem isso [chamar mulheres para suas chapas] para cumprir a cota”, afirma Iracema.
De fato, a prática já virou praxe a tal ponto que o assunto é discutido abertamente. Em entrevista ao jornal O Povo, o presidente municipal do PTC em Fortaleza, Roberto Lima, disse que “candidatas aceitaram emprestar seus nomes para o partido conseguir completar seus quadros.”
Fotos do Facebook
Mas o que fazer para coibir esse suposto desvirtuamento da lei? Não muito, segundo André de Carvalho Ramos, procurador regional eleitoral em São Paulo, coordenador do Grupo Executivo Nacional da Função Eleitoral (Genafe) do Ministério Público Federal e professor de Direito da USP.
Isso porque, segundo Ramos, os partidos são obrigados a seguir a cota feminina até o momento em que os Tribunais Regionais Eleitorais julgam os pedidos de registros dos candidatos.
“Nesse ponto, nós, das Procuradorias Regionais Eleitorais, detectamos várias irregularidades de descumprimento à cota em pelo menos 15 Estados”, diz.
Em alguns dos casos, foram identificados registros fraudulentos de candidaturas, sendo que algumas das mulheres nem sabiam que haviam sido inscritas como candidatas. Seus nomes foram usados indevidamente, sendo que fotos e dados chegaram a ser tirados do Facebook. Esses casos, incluindo um em São Paulo, estão agora nas mãos da polícia, com dirigentes dos partidos sendo acusados de falsidade ideológica.
No entanto, nesse estágio do processo, é permitido que as coligações se adequem ao percentual de 30% de candidatas mulheres.
Copo meio cheio
A partir daí é que começa o problema, já que no próximo ponto do processo eleitoral, não é mais exigida a cota.
Ou seja, se um partido tiver três mulheres entre seus dez candidatos, ele pode permanecer na disputa porque cumpriu a cota. Mas, se depois disso, as três candidatas desistirem, nada acontece, não há nenhuma punição.
“Após julgado o pedido de registro da candidatura, não há mais como exigir que o partido reponha as candidatas que por ventura renunciaram ou tiveram seu registro negado, explica Ramos.
“O crivo dos 30% não é contínuo. E por isso temos o copo meio cheio. As cotas foram, sim, bem sucedidas, mas é preciso ampliar o crivo para todo o processo.”
Sem a obrigação de se cumprir a cota após indeferimentos de registros de candidaturas, abrem-se espaços para que partidos tenham “candidatas fantasmas”.
Para o procurador, é preciso alterar a lei para que a cota seja cumprida até a hora do voto. “Os partidos que não substituírem (as candidatas indeferidas, por exemplo) tem de ser responsabilizados. Fora que é preciso estimular a candidatura real, inclusive com financiamento. Isso asfixiaria campanhas falsas.”
Cotas eficientes?
Prova de que a política das cotas precisa ser aperfeiçoada é o fato de que, nas eleições deste ano, apenas 30,9% dos mais de 24.900 candidatos eram mulheres.
E, contabilizados os votos, a representação feminina da política continua baixa, apesar de as mulhores serem 52% do eleitorado.
Na Câmara dos Deputados, das 513 cadeiras, somente 51 serão ocupadas por mulheres. No Senado, haverá apenas 11 mulheres para 70 homens.
Nos governos estaduais, a disparidade de gêneros é ainda mais gritante: apenas uma governadora foi eleita: Suely Campos (PP), em Roraima. Até este ano, duas mulheres eram governadoras: Roseana Sarney (PMDB), no Maranhão, e Rosalba Ciarlini (DEM), no Rio Grande do Norte.
A baixa representação das mulheres na política é o fator que mais agrava a desigualdade de gênero no Brasil, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), divulgado em julho.
“Apesar de o Brasil ter uma presidenta mulher, esse movimento não se estendeu para as outras esferas do sistema político”, disse à Agência Brasil Andréa Bolzon, coordenadora do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, que reúne os dados do Pnud.
“Os outros indicadores estão próximos da média da América Latina, mas, no caso da representação política, o Brasil está muito atrás.”
O Brasil ficou em 85º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano, entre os 187 países pesquisados, deixando o país muito atrás de outros países da América Latina no quesito representação política feminina.
A expectativa é a de que o cenário mude com uma possível reforma política que tenha em pauta a participação paritária das mulheres no setor.
Mariana Della Barba
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