(Opera Mundi, 24/02/2015) Estudos têm relacionado o nascimento de crianças sem maturidade biológica à cesariana realizada antes do desencadeamento do trabalho de parto; taxa de prematuridade tem acompanhado o aumento de cesáreas no país
No início de janeiro o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Saúde Suplementar, que regula os planos de saúde privados no país, publicaram uma resolução com o objetivo de reduzir o número de partos cirúrgicos (cesarianas) considerados desnecessários. As medidas, que devem começar a valer no segundo semestre, exigirão que os médicos justifiquem de maneira mais rigorosa e detalhada os motivos que levaram à escolha da cirurgia para o nascimento da criança. Caso contrário podem deixar de receber pelo trabalho. É um esforço, considerado apenas paliativo por uma parte dos médicos, para tentar diminuir os índices absurdamente elevados de partos cirúrgicos feitos no Brasil – em especial no setor privado de saúde – e uma de suas prováveis consequências: o nascimento de crianças que ainda não alcançaram maturidade biológica.
Os partos cirúrgicos são essenciais nos casos em que há risco de doença grave ou de morte para a mãe ou o bebê. Mas, sem uma indicação clínica específica, podem contribuir, em um grau ainda não conhecido pelos especialistas, para o nascimento de crianças antes do término da gestação, um fenômeno que vem aumentando no país. Os médicos que atendem os recém-nascidos se preocupam com o aumento dos casos de bebês prematuros, que nascem com menos de 37 semanas de gravidez, e também com os chamados termos precoces, nascidos com 37 e 38 semanas. Até pouco tempo atrás obstetras e pediatras acreditavam que estes últimos já teriam a maturidade necessária para viver bem fora do útero, razão por que eram considerados nascidos a termo. Mas começam a se acumular evidências de que os termos precoces não estão prontos para nascer e que precisariam passar mais uma ou duas semanas no ventre materno. Esses bebês em geral recebem alta sem nenhuma complicação aparente, mas apresentam mais risco de desenvolver problemas respiratórios – e até de morrer – nos primeiros dias de vida.
Especialistas em saúde materna e infantil desconfiam que há uma conexão entre o nascimento das crianças sem maturidade biológica e o excesso de cesarianas desnecessárias. Há 40 anos o índice de cesarianas cresce no Brasil. Cerca de 15% dos partos eram cirúrgicos nos anos 1970. No início desta década o número de bebês brasileiros que nascem por meio de cesariana ultrapassou o dos que vêm ao mundo pela via natural. Hoje 52% dos 3 milhões de partos feitos anualmente são cesáreos, segundo o mais amplo estudo sobre o assunto, o Nascer no Brasil, cujos resultados foram divulgados nos Cadernos de Saúde Pública em 2014. Coordenado por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), esse levantamento reuniu informações de 23.894 gestantes atendidas em 2011 e 2012 em 266 hospitais (públicos, privados e mistos) de 191 municípios brasileiros.
Embora o número total de cesarianas seja maior nos hospitais públicos – ali nascem 8 de cada 10 bebês brasileiros –, elas são proporcionalmente bem mais frequentes na rede particular. Nos hospitais privados, onde são atendidas as gestantes com renda mais elevada, 90% dos partos são cirúrgicos, enquanto no setor público esse índice é menor e corresponde a 40% dos partos – ainda assim, um número alto ante os 15% recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Boa parte dessas cirurgias – alguns calculam em 1 milhão – ocorreria sem indicação médica, contribuindo para o nascimento antes de o organismo estar devidamente preparado.
Estudos populacionais realizados por grupos de pesquisa distintos em maternidades de diferentes regiões do país indicam que a proporção de bebês que nascem antes de completar 37 semanas de gestação está em ascensão nas últimas décadas, tendência já observada nos Estados Unidos e em alguns países da Europa. Mostram ainda que esse índice – ele varia de 11% a 13% dos nascidos vivos, dependendo do universo analisado no levantamento – é cerca de duas vezes maior do que os 6,5% oficiais, registrados pelo Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc), do Ministério da Saúde, e coloca o Brasil como o décimo país em que mais nascem prematuros.
O mais recente desses levantamentos, coordenado pelo obstetra José Guilherme Cecatti, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acompanhou 33.740 gestantes atendidas em 2011 e 2012 em 20 hospitais das regiões Nordeste, Sudeste e Sul. Desse total, 4.150 bebês (12,3%) nasceram com menos de 37 semanas de gestação, segundo artigo de outubro de 2014 na PLoS ONE.
Nem todas essas crianças nasceram antes do tempo por causa da cesariana. Na realidade, a maior parte delas (65%) nasceu prematuramente de modo espontâneo – porque a mãe não recebeu a assistência pré-natal adequada, porque apresentava problemas de saúde, como hipertensão e diabetes, ou porque tinha idade avançada. Em 35% dos casos, a criança foi tirada do útero prematuramente por meio de intervenção cirúrgica. Na maioria das vezes a cirurgia era necessária por questões de saúde, como pressão alta ou problemas na placenta, que colocavam em risco a vida da mulher ou da criança. Mas uma proporção, ainda que pequena, pode ser decorrente de cesarianas desnecessárias. Para o obstetra Renato Passini Junior, do grupo da Unicamp, essa é uma conexão difícil de estabelecer. “Seria preciso identificar as cesarianas eletivas feitas no país e verificar se foram indicadas adequada ou inadequadamente”, diz. Nem sempre é simples fazer essa avaliação. “Há casos em que a indicação não é absoluta e uma série de condições da mãe e do feto levam à realização do procedimento, já que a demora pode colocar em risco a saúde da mulher ou da criança”, explica.
A evidência mais contundente de que o excesso de cesarianas pode levar ao nascimento da criança antes do desejado vem dos estudos conduzidos pela equipe do pediatra Marco Antonio Barbieri, da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. “Temos observado claramente um aumento na taxa de prematuros devido às cesarianas”, afirma o pesquisador, que no final dos anos 1970 iniciou o primeiro estudo de acompanhamento populacional, o chamado estudo de coorte, realizado no país.
Barbieri e seus colaboradores coletaram dados sobre o parto e a saúde dos 6,7 mil bebês que nasceram na cidade em 1978 e depois compararam com os de 2,9 mil crianças nascidas em 1994. Nesse período, o índice de prematuros praticamente dobrou: passou de 7,6% para 13,6% do total de partos. A proporção aumentou de 30% para 51% entre os nascidos de cesáreas no sistema público e privado e de 4% para 36% nos partos realizados em hospitais particulares. “A taxa de prematuridade dobrou da coorte de 1978 para a de 1994 e a proporção de prematuros que nascem com 35 ou 36 semanas triplicou”, conta Barbieri.
O aumento concomitante nesses dois índices chamou a atenção dos pesquisadores. “Havia vários fatores relacionados ao aumento no índice de prematuros, mas o que se destacava era a cesárea”, conta a pediatra Heloísa Bettiol, da equipe de Ribeirão. “Examinando aspectos como os dias da semana e os horários em que foram realizadas as cesarianas e se haviam ocorrido no sistema público ou privado, foi possível verificar que existe uma forte influência do fator conveniência”, afirma Heloísa. Segundo ela, isso indica que boa parte das cesarianas havia sido planejada com antecedência, muitas vezes para a conveniência da gestante, do médico ou de ambos.
Uma terceira coorte, que coletou em 2010 informações sobre 7 mil crianças, deve ajudar a estimar com mais precisão o índice de cesarianas desnecessárias. “Estamos concluindo a análise de informações coletadas nos prontuários médicos e em entrevistas com mães que fizeram cesarianas”, diz Barbieri. “Os dados preliminares mostram que o percentual de cesáreas programadas e sem indicação clínica é alto, alcança de 20% a 25% dos partos cirúrgicos.”
As cesarianas sem indicação específica não são exclusividade nacional. Um levantamento recém-divulgado na Jama Pediatrics avaliou as condições associadas ao nascimento de 5.828 crianças prematuras em oito países – entre eles o Brasil – e identificou que 4% delas haviam nascido por parto cirúrgico sem indicação obstétrica.
O estudo Nascer no Brasil, da Fiocruz, também atribui o que chama de “epidemia de nascidos com 37 ou 38 semanas no Brasil” ao menos em parte às cesáreas eletivas, feitas antes do início do trabalho de parto – e, portanto, sem evidência de serem imprescindíveis. Segundo seus autores, “estima-se que, no país, quase 1 milhão de mulheres, todos os anos, são submetidas à cesariana sem indicação obstétrica adequada”.
Uma das razões por que o agendamento do parto cirúrgico leva a prematuros e termos precoces é o cálculo da idade gestacional. “A estimativa do tempo de gestação tem uma margem de erro de 15 dias para mais e para menos”, explica Heloísa. Como consequência, ao se agendar uma cesárea para a 37ª semana de gestação, pode-se tirar do útero um bebê de 35 semanas.
Ruth Guinsburg, neonatologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), lembra que é preciso não transformar a cesariana em vilã. “Bem indicada, ela pode salvar a vida da mãe e do bebê”, diz. “O que o governo está tentando com a nova medida é limitar o número absurdo de crianças que nascem com 36, 37 e 38 semanas.”
Nos últimos anos os médicos começaram a se preocupar com esses bebês porque eles costumam receber alta e ir para a casa sem nenhuma complicação grave aparente. Mas estudos já mostram que mesmo os que nascem com 37 ou 38 semanas correm mais risco de desenvolver problemas de saúde nos primeiros dias após o nascimento, no primeiro ano de vida e até na idade adulta.
“Os prematuros tardios são até gordinhos, parecem estar bem de saúde, mas apresentam uma série de pequenos problemas”, conta Ruth, chefe da UTI neonatal do Hospital São Paulo, ligado à Unifesp. Eles apresentam mais dificuldade para respirar, manter níveis adequados de glicose e de eletrólitos no sangue e mamar. Também correm mais risco de morrer no primeiro ano de vida do que as crianças que nascem com uma ou duas semanas a mais. Um dos trabalhos que confirmam a vulnerabilidade maior desses bebês foi conduzido pela equipe do pediatra Fernando Barros, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul. Há quase três décadas Barros e colaboradores acompanham a saúde de quase todas as crianças que nasceram nos anos de 1982, 1993 e 2004 nesse município do extremo sul gaúcho.
Comparando dados sobre a gestação, o parto e a saúde, eles constataram que os bebês que nasceram com 37 semanas de gestação corriam um risco duas vezes maior de morrer no primeiro ano de vida do que os nascidos com 39 semanas. O índice de mortalidade foi de 23 para cada mil no primeiro grupo e 10 por mil no segundo, de acordo com artigo de 2012 na revista BMC Pediatrics.
“O ponto de corte usado pela OMS para definir a gestação a termo está inadequado e deve mudar em breve”, afirma Barros. “Vários estudos indicam que é preciso alterá-lo para 39 semanas.” Cecatti, da Unicamp, discorda. “Acho difícil haver uma posição oficial elevando o patamar da prematuridade porque são muitas as variáveis envolvidas”, diz.
Seja como for, os especialistas recomendam a mães e médicos que marquem a cirurgia para a 39ª semana da gestação. Ou, numa situação ideal, que aguardem o início do trabalho de parto. “A melhor indicação de que os bebês estão prontos para nascer é dada pela natureza, com o desencadeamento do trabalho de parto”, lembra Cecatti.
A transformação desse cenário não é simples. O estudo Nascer no Brasil revela que o atendimento à saúde da grávida deixa a desejar: 60% delas passaram pelo primeiro exame pré-natal depois da 12ª semana de gestação, o que é considerado tarde, e um quarto não teve as seis consultas recomendadas. Outras 60% não receberam informação de qual maternidade procurar e quase 20% tiveram de buscar atendimento em mais de uma maternidade depois de iniciado o trabalho de parto – em geral faltavam médicos, equipamentos ou materiais.
Não é só no setor público. Nos hospitais privados os leitos obstétricos seguem minguando e faltam médicos e equipes especializadas na realização de partos normais, compostas também por doulas e enfermeiras obstetrizes. “As maternidades são hoje um mau negócio e muitas estão fechando. As que persistem são centros cirúrgicos vocacionados para cesáreas”, diz César Eduardo Fernandes, membro da Comissão de Defesa Profissional da Associação de Ginecologia e Obstetrícia do Estado de São Paulo (Sogesp).
Há um consenso entre os entrevistados para esta reportagem de que o caminho para reduzir o número de cesarianas desnecessárias e o de nascimento de crianças não totalmente prontas para vir ao mundo passa pela reformulação do sistema de atenção à gravidez e ao parto. “As medidas anunciadas pela ANS são paliativas”, afirma Fernandes. “Não é criminalizando o obstetra que as cifras relacionadas às cesarianas irão baixar. É preciso investir na reeducação de médicos, profissionais da saúde e pacientes.” Para Maria Elisabeth Moreira, da Fiocruz, a mudança nesse cenário passa necessariamente pelo empoderamento das mães. “É preciso fazer o que se fez em relação ao aleitamento materno: oferecer conhecimento para que possam opinar com segurança sobre a melhor via de parto para elas”, diz.
Aline Giraldi e Ricardo Zorzetto/Revista Pesquisa FAPESP
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