(El País, 20/03/2015) Poderia ter sido mais uma morte por um projétil sem rumo, mas um vídeo amador transformou o caso de Claudia Silva Ferreira, de 38 anos, num dramático exemplo de como a vida perde valor no Brasil. Atingida por dois disparos em um tiroteio entre policiais e traficantes em uma favela do Rio, o corpo inerte da auxiliar de limpeza foi trancado pelos agentes no porta-malas da viatura e encaminhado – teoricamente para ser socorrida apesar de já estar morta – para um hospital. O porta-malas abriu e durante 350 metros o corpo de Claudia foi arrastado e dilacerado à vista de todos. “Eles arrastaram minha mãe como se fosse um saco”, gritou a filha mais velha, Thaís Silva, de 18 anos na época do crime, após encontrá-la sem vida. Claudia que, após ter sido atingida não mereceu nem ser transportada no banco de trás do veículo onde os policiais levavam armas e equipamento, cuidava de oito crianças, quatro filhos e quatro sobrinhos. Na última segunda-feira, a morte completou um ano, sem que ninguém tenha sido punido até hoje.
Os seis agentes envolvidos no tiroteio e no traslado do corpo não foram julgados, tampouco foram expulsos da Polícia Militar, embora a corporação tenha autonomia para isso independentemente de decisões judiciais. Todos eles foram afastados das suas funções na rua, mas continuam fazendo trabalhos internos. A prisão temporária máxima dos agentes foi de 30 dias, apesar dos acusados terem um currículo sangrento: pelo menos 69 pessoas morreram em supostos tiroteios com dois dos acusados desde 2000, segundo publicou o jornal Estado de S. Paulo.
Enquanto isso, a Justiça do Rio leva um ano só para determinar quem julgará o caso, se um tribunal comum ou um militar. O conflito ainda está no entendimento do crime, se se trata de um homicídio com ou sem intenção de matar. O Ministério Público do Rio defende que o caso seja enviado à 3ª Vara criminal, e julgado por um júri de sete cidadãos, porque entende que os dois policias que entraram atirando na favela de Madureira em uma operação contra o tráfico tinham intenção de matar. Eles, segundo o promotor do caso, deveriam ser julgados por homicídio doloso, com penas de 12 a 30 anos de prisão, e não por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. No caso do crime ser entendido como homicídio culposo, punido com 6 a 20 anos de reclusão, o julgamento deveria seguir em um tribunal militar, onde apenas um magistrado se manifesta. O juiz ainda não se pronunciou sobre o destino do processo.
O irmão de Claudia, Júlio César, lamenta o esquecimento do caso e descreve algumas das rotinas que não permitem à família virar a página. “As crianças começam a chorar de repente, você pergunta por que, mas elas não querem falar. Aí você insiste e te dizem que estavam lembrando da mãe. Este ano tem sido complicado mesmo”, conta pelo telefone. “Os aniversários são difíceis, era ela quem fazia os bolos e sempre brincava com as crianças. Sempre participava, não importava se a brincadeira era de homem ou mulher, ela sempre estava com elas”.
O único a responder até agora pelo caso foi o Estado do Rio de Janeiro que, além de uma indenização por danos morais e materiais, paga uma pensão mensal ao marido e quatro filhos dela. O dinheiro cairá na conta da família até agosto de 2040, quando Claudia completaria 65 anos se uma bala não tivesse atravessado o seu coração.
María Martín
Acesse no site de origem: Um ano sem Claudia e sem culpados (El País, 20/03/2015)