(El País, 15/04/2015) Enquanto marcham pelas ruas indecisos cordões, os nossos homens públicos vão desencavando estranhas leis que, como um rio que corre ao contrário, nos encaminham a um mundo nebuloso, regido pela ignorância e pela força. À crise institucional, junta-se a brusca desaceleração da economia, cenário que nos torna vulneráveis a discursos salvacionistas. A História nos ensina, todas as vezes que uma sociedade abraça soluções messiânicas o resultado é desastroso. E se levarmos em consideração que a tradição política brasileira é a crônica de sucessivas ditaduras, concluiremos que nossa incipiente democracia corre sérios riscos, vergada sob os ventos reacionários que a açoitam.
A atual legislatura deverá entrar para os anais como aquela em que demos largos passos para trás, rumo à obscuridade. O presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), já deixou claro que alguns temas não serão votados enquanto estiver à frente da Casa, como o direito ao aborto, ao mesmo tempo em que desenterra projetos que provocam enorme retrocesso, como o homofóbico Estatuto da Família ou o que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. Curiosamente, para justificar essas modificações são evocados princípios religiosos, como se vivêssemos sob um regime teocrático.
Alegando que a vida se inicia no momento mesmo da concepção – argumento que contraria as mais elementares evidências biológicas –, Eduardo Cunha não só já se manifestou “radicalmente contra” o aborto, como ressuscitou projetos que ampliam a repressão ao procedimento, tipificando-o como crime hediondo (comparável a latrocínio, homicídio qualificado, genocídio…) e prevendo a prisão por até vinte anos do médico que pratique a operação. Membro da igreja Sara Nossa Terra, Cunha também afirma que do “ponto de vista bíblico” o casamento homossexual “não é coisa normal”. Por isso, defende a votação do Estatuto da Família, de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), fiel da Assembleia de Deus, redefinindo núcleo familiar somente como a união entre homem e mulher, contradizendo decisão do Supremo Tribunal Federal que igualou os direitos dos casais homossexuais aos dos casais heterossexuais.
O presidente da Câmara dos Deputados, e segundo na linha de sucessão de Dilma Rousseff, responsabilizou-se ainda por acelerar a discussão do projeto que altera a maioridade penal de 18 para 16 anos – proposta que encontrava-se estacionada na Casa desde 1993. A emenda, elaborada pelo ex-deputado Benedito Domingos, pastor da igreja Assembleia de Deus que teve seus direitos políticos cassados por 10 anos, condenado por envolvimento em esquema de corrupção, é toda ela baseada não em pressupostos jurídicos, mas em citações do Velho Testamento.
Agora, Cunha acrescentou mais uma bandeira à sua cruzada: criou uma comissão especial para debater o projeto do deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC) que revoga o Estatuto do Desarmamento. A proposta, entre outras coisas, diminui de 25 para 21 anos a idade mínima para posse de armas de fogo e autoriza seu porte nas ruas – direito hoje limitado a policiais, militares e profissionais que precisam da arma para trabalhar –, mesmo por pessoas que já estiveram presas ou estejam sendo investigadas por crimes violentos.
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), entre 1980 e 2003, ano em que o Estatuto foi sancionado, o número de homicídios aumentou em média 8,36% ao ano – de 6.104 para 35.576. Em 2013, quando completou dez anos de vigência da lei, o número de homicídios alcançou 35.578 – média de 0,53% ao ano. Isso significa que o crescimento do número de pessoas assassinadas antes do Estatuto era 15 vezes maior que depois de sua entrada em vigor.
Eu não compreendo em nome de que Deus agem Eduardo Cunha e os parlamentares que o apoiam – bancada que evidentemente não se limita aos evangélicos. Que Deus é esse que condena à morte milhares de mulheres pobres todos os anos, vítimas de abortos mal sucedidos? Que Deus é esse que permite que todos os dias um homossexual seja assassinado? Que Deus vingativo é esse que exige o encarceramento aos 16 anos de jovens de periferia, em geral afrodescendentes? Que Deus cruel é esse que ao invés de pregar a paz sugere que nos armemos até os dentes?
Na pequena colônia italiana de onde provenho, o Deus que me ensinaram a respeitar era o Deus do amor, do perdão, da tolerância, da generosidade, da reciprocidade. O mandamento mais importante era amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei – o nosso comportamento ético decorria dessa primeira assertiva. Com absoluta certeza posso afirmar que o Deus da minha infância não é certamente o Deus de que fala Eduardo Cunha e seus seguidores.
Acesse no site de origem: Mas que Deus é esse?!, por Luiz Ruffato (El País, 15/04/2015)