(Opera Mundi, 03/06/2015) Marcelo D’Salete fala sobre ‘Cumbe’, quadrinho com histórias de luta negra contra a escravidão no Brasil, pensado como ‘contraponto a uma ideia de submissão e harmonia que oficialmente a História brasileira tenta forjar’
Um país que recebeu milhões de pessoas negras escravizadas guarda muito da cultura africana. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), pelo menos dois milhões de pessoas africanas desembarcaram no Brasil, embora alguns autores defendam que na verdade foram quatro milhões.
É certo que os comerciantes que atuavam em Angola e no Congo forneceram o maior número de escravos que chegaram ao Brasil até 1888, ano em que a Lei Áurea aboliu a escravatura. Depois deste marco é mais simples falar sobre os anos de sofrimento e exclusão que afligiram os escravos. Para fugir a essa tendência, o quadrinista Marcelo d’Salete lançou no ano passado o livro “Cumbe”, que reúne quatro histórias de resistência e acaba de ser editado em Portugal.
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D’Salete é designer gráfico e mestre em História da Arte. É professor de Artes do ensino básico, ilustrador e autor de outros três quadrinhos: “Noite Luz” (2008), “A Encruzilhada” (2011) e “Risco” (2014). A influência angolana em “Cumbe” serve de pretexto a esta conversa que acaba por abordar também a situação da população negra no Brasil, ainda hoje marginalizada.
“Cumbe” traz um estilo diferente daquilo a que você estava habituado – urbanização, problemas sociais contemporâneos. Em que se baseou para contar uma história que se passa no período colonial do Brasil?
Faço quadrinhos desde o começo dos anos 2000. No início fazia histórias em quadrinhos mais voltadas para falar sobre grandes cidades, muito sobre uma perspectiva negra, conflitos. Havia muito pouca representação nas histórias em quadrinhos, o que me levou a atentar para isso. Em 2006, durante um curso feito com um pesquisador sobre a história das pessoas negras no Brasil, lemos um trabalho do Décio Freitas sobre a batalha no Quilombo dos Palmares, Alagoas, e a partir daí fiquei pensando em falar sobre o período da escravidão. Fiz uma grande pesquisa no sentido macro-histórico, quantitativo, para saber o que era também o sistema da escravidão. Sabia desde aquele momento que eu não queria fazer algo muito didático, queria colocar ali outros elementos e fazer uma narrativa que não fosse pautada somente em texto; o meu trabalho não é esse, é imagem. Na verdade, você constrói a história a partir das imagens que vai lendo, e também trabalho muito com algumas sugestões.
Desde 2006 fiz essa pesquisa, primeiro dos principais textos sobre o que era a escravidão, depois cheguei a alguns outros – para mim, mais importantes – que falavam de alguns casos específicos de africanos escravizados que se envolveram em algum tipo de conflito com os senhores e isso geralmente ia parar na Justiça, principalmente a partir do século 19. Ali tinha alguns detalhes sobre a vida dessas pessoas que achei interessante para transformar em história, mas sempre pensando que o fato era interessante, mas não suficiente. Acabava acrescentando novos elementos; muitos fiz para construir as personalidades das personagens, como a situação sobre Calunga, que é um espírito de Angola relacionado à morte e também ao mar. Hoje em dia não sei se existe essa referência, mas antigamente tinha. Vi que precisava de mais informações para falar dessa cultura de origem bantu. Isso no Brasil está muito presente por causa da linguagem, tem muitos termos do kimbundu, ovimbundu também.
Quando passou de contos mais urbanos para o período histórico, qual foi a sua maior preocupação com o diálogo?
Tive que fazer uma grande mudança. A cidade eu já conhecia, muitas vezes trabalhava com observação, tirava fotos; no “Cumbe” não. Tive que fazer uma pesquisa iconográfica muito grande de alguns artistas da época, como Albert Eckhout, Frans Post, Johann Moritz Rugendas e Jean-Baptiste Debret, para juntar um pouco ao quebra-cabeça e ver o trabalho com a cana-de-açúcar, porque eu não tinha detalhes disso. Tive que ter cuidado porque precisava contar essas histórias e não queria que as pessoas lessem somente como um conto que torna as personagens vítimas. Tinha que tentar colocar as personagens de forma a que causasse empatia, compreensão sobre as suas motivações. Não foi fácil fugir dessa visão dos africanos escravizados. Na literatura brasileira, mesmo sobre escravidão, os protagonistas são brancos; “A Escrava Isaura” é assim. Quem faz essa outra perspectiva é Luís Gama, falando de África não como um local totalmente abandonado, mas de um ponto de vista positivo.
No livro, além da linguagem vemos também alguns símbolos, como Chibinda Ilunga, a tartaruga de Cabinda, a nsanga, os desenhos tchokwé.
O livro faz referência a alguns grupos que estão no nordeste de Angola, como os tchokwé. Esse grupo é muito importante, pelo menos em termos de representação artística. Achei que tinha tudo a ver com o sentido que eu queria utilizar na história. Aparece a escultura de Chibinda, relacionada a uma figura que é uma pessoa mais velha, que ensina. E aparece também outro símbolo tchokwé, um sona na árvore. O português José Redinha mostra esses símbolos quando fala sobre as culturas tradicionais angolanas. No Brasil, depois que a gente passa o século 19 e 20, quando se fala de cultura negra, isso vira sinônimo de candomblé, que é muito importante hoje (ótimo!), só que foi criado e divulgado no final do século 19 e 20 e tentaram abranger isso para explicar todas as experiências negras/religiosas no Brasil, e não é. Na verdade, o grupo dos iorubás era minoria. A grande maioria dos africanos escravizados que foram para o Brasil era de origem bantu, pelo menos 70%, então queria trazer isso para o livro, em termos de imagem e linguagem.
Essa cultura de origem bantu também está presente nas palavras “muleque”, “marimbondo”, “quindim”, “caçula”, e muitas outras. Isso é algo que permanece e poucas pessoas sabem. No livro, o título de três das quatro histórias é de origem bantu: Calunga, Cumbe e Malungo.
Que outras marcas esses milhões de escravos deixaram no Brasil?
O que tem de interessante para falar sobre isso são os candomblés. Muitos são do século 19, deixaram marcas religiosas e culturais, mas também na geografia das cidades de Salvador e de outras que se mantém até hoje e que é uma resistência negra porque foram perseguidos por muito tempo. Viviam afastados dos centros das cidades e só na época de Getúlio Vargas deixam de ser marginalizados e caso de polícia. Ter resistido por mais de 100 anos é incrível.
A sociedade brasileira tem uma necessidade muito grande de tentar apagar essas marcas, principalmente nas grandes cidades. Em São Paulo, por exemplo: antigamente, o bairro da Liberdade, que é bem próximo da Sé, tinha um Pelourinho, isso foi totalmente apagado. A Barra Funda e o bairro do Bixiga eram extremamente negros. O único vestígio que tem na Barra Funda e no Bixiga hoje são as escolas de samba, que têm uma origem muito negra. Para fazer a pesquisa para o livro fui para o Recife para conhecer a cidade, fui para Alagoas, ao atual Memorial de Palmares, e para Olinda, onde conversei com um vendedor de gravuras e ele mencionou o Mercado de Escravos. Tem aquela geografia de um mercado de escravos, mas não tem nenhuma menção sobre isso. É um esforço da sociedade brasileira de apagar para não reconhecer, para não reparar e esquecer, como se não fosse parte do nosso passado.
Cumbe é uma história de resistência e luta dos negros no século 17, durante o período da cana-de-açúcar. Contudo, vive-se agora uma fase particularmente importante para a população negra brasileira, com casos de racismo, exclusão, violência. Você acha que o livro tem ligações com a atualidade?
A intenção de fazer o livro não era falar apenas sobre o passado. Não acho que é algo definitivo, é até uma narrativa bem pessoal, tentando montar um quebra-cabeça daquilo que seria necessário para contar essas histórias, pesquisando sobre cultura, história. O livro tenta mostrar aquele momento, mas pensando também no presente, nessa necessidade de os grupos atuais também construírem referências interessantes para as novas gerações, tanto para pessoas mais velhas lerem como para os mais jovens. Eu lido com alunos do ensino básico e do secundário também. Eles ficaram sabendo do livro e é muito legal ver que estão lendo como outra forma de falar de escravidão e sem deixar essa população negra apenas com atos passivos. Falar do passado pensando no momento atual, em que estamos precisando construir algumas referências positivas e mais complexas sobre a nossa História. Acho que pode servir como um elemento mais nesse conjunto para as novas gerações que estão se formando.
São quatro histórias que estão claramente interligadas por essa resistência. Que outros aspectos aproximam as personagens?
Algumas personagens, símbolos e locais são comuns. A ideia de resistência não é sempre a mesma. É importante ver que no livro não tento fazer uma coisa tão dicotômica de africanos escravizados de um lado e senhores brancos do outro. É lógico que era uma sociedade bem hierarquizada, mas por outro lado havia uma ideia de assimilação. Isso está representado, por exemplo, na primeira história, com um casal: o rapaz trabalha no engenho e está mais próximo de elementos e traços da cultura negra bantu, isso está apresentado principalmente pelas suas crenças, ele fala de Calunga. Ele se relaciona com uma menina que trabalha na casa grande, que assimilou a cultura branca. Isso está marcado pelo crucifixo, porque ela é cristianizada. Nos meus estudos ficou bem evidente que existiam categorias e formas distintas de esses africanos estarem presentes. Aqueles que eram considerados “boçais”, termo utilizado na época, que tinham trabalhos mais pesados, e sobreviviam muito pouco tempo. Na época da escravidão eles não passavam dos 25-30 anos, imaginar isso hoje para mim é uma coisa extremamente violenta, isso porque eles trabalhavam 18 horas por dia. Imagina alguém inválido aos 25 anos? Alguém que não consegue fazer nada porque o seu corpo já está destruído.
O Mapa da Violência 2015, divulgado há pouco mais de uma semana, mostra que das 39.686 vítimas de disparo de qualquer tipo de arma de fogo, em 2012, 28.946 eram negros e 10.632, brancos. Fala-se no Brasil de mais justiça social por um lado e aumento da violência nas comunidades negras por outro. Como vê a situação?
É extremamente complexa. Nos últimos anos, antes da crise econômica atual, houve um momento de abundância relativa, em termos de emprego, e as estatísticas demonstram que a taxa de homicídio da população branca caiu e, no mesmo período, essa taxa aumentou muito, principalmente no que diz respeito a meninos negros.
Existe um discurso oficial de harmonia que a elite brasileira tenta vender, quando na verdade a sociedade brasileira é extremamente violenta por causa dessa desigualdade que se mantém desde a escravidão. Tentam não falar de escravidão, não falar dos males da escravidão hoje na sociedade brasileira, que deixa na base da pirâmide quase 100% da população negra; se for mulher negra, mais ainda.
O Mapa da Violência falava numa diferença de 142%: para cada 100 mil habitantes, a taxa de vítimas da cor branca é 11,8 mortes e a de negros 28,5 mortes. O que acha que falta fazer para mudar isso?
Acho que precisamos ter mais negros ocupando postos de importância na política e em outras áreas. Precisamos também criar elementos para que esses jovens negros tenham perspectiva para além do crime, é nisso que o livro tenta contribuir. Para que possam ver-se na mídia e noutros locais bem representados. Isso é simbólico, parece pouco, mas afeta muito se a gente pensa em gerações e na imagem que foi criada durante séculos sobre esse grupo, que é negativa, pejorativa; basta ver no dicionário o que está escrito para o que é o branco e o que é o negro. Essa imagem precisa ser questionada e renovada. Mas, além disso, é preciso movimentação política, discussão, como se repara economicamente esses grupos. Não apenas reparar no sentido de financiamentos diretos, mas tentando reverter a situação, muitas vezes, de indigência. Investir em educação.
É complexo, não saberia dizer em poucas palavras e nem tenho uma resposta pronta. É algo que eu acho que precisa de uma movimentação muito forte no campo da cultura para se mostrar presente, para mostrar que as manifestações populares de origem africana são importantes também para a nossa formação. Temos que parar de entender isso como exótico, como é visto pela elite brasileira quando fala de candomblé e outras coisas. Não é encarado como fundamental e estruturante da própria cultura. E temos que pensar como que na política e na economia é possível reverter esses índices. Ultimamente no Brasil a gente está passando por uma onda neoliberal e conservadora. Considero que isso é uma ameaça muito grande a esse tipo de situação.
Com seus alunos, ao abordar a escravidão, você se limita aos manuais obrigatórios ou tenta fugir a isso?
São poucos autores que abordam isso e depois conseguem fazer de uma forma que não seja apenas encarar a história do negro no Brasil, principalmente no período da escravidão, vendo a população negra como vítima, como aqueles que sofreram o jugo da escravidão, que estavam marginalizados, etc. É lógico que existia isso sim, mas também existia resistência, e a ideia do livro é falar um pouco disso. Acho que esse é um dos pontos principais que a gente tem que tratar quando trabalhamos com educação, não falar apenas que houve escravidão, mas também de quem se revoltou contra isso, quais eram os movimentos contrários a esse tipo de situação. Tem Luís Gama em São Paulo, a Revolta dos Malês, o Quilombo dos Palmares. Muitas histórias podem ser contadas como contraponto a uma ideia de submissão e harmonia que oficialmente a História brasileira tenta forjar. Hoje há um movimento contra essa ideia de harmonia para dizer que não, não é bem assim, a situação era bem mais complexa.
Como se consegue afirmar esse movimento e mostrar outro ângulo da História?
Isto está em processo, ainda não é algo tranquilo no Brasil. Em 2003 foi promulgada a lei 10.639, sobre o ensino de Cultura Afro-Brasileira nas escolas, principalmente nas disciplinas de Arte, História, Língua Portuguesa. Por causa disso, algumas editoras começaram a produzir material, que nem sempre é de boa qualidade, mas espero que com o decorrer dos anos, e mais pesquisa, melhore. Este ensino ainda não está na prática pedagógica de boa parte das escolas. Na escola em que atuo, em São Paulo, temos um grupo de professores responsáveis por trazer essa discussão e por fazer outros projetos didáticos com os alunos, mas conheço professores que atuam em São Paulo – que é uma capital, onde isso é razoavelmente discutido –, e mesmo assim há escolas em que isso ainda não é a prática quotidiana. No interior menos ainda. A lei foi promulgada, mas algo que estão discutindo hoje, 12 anos depois, é que não foram pensados os meios de avaliação, como isso será fiscalizado, cobrado nas escolas ou incentivado para que aconteça.
As imagens fortes em “Cumbe” não caracterizam o livro como um quadrinho para crianças. Como poderia essa parte da história ser contada a elas?
É. Não é o caso do livro. No Brasil, e também noutros locais, os quadrinhos sempre foram muito vinculados a um tipo de publicação para crianças. Nada contra, acho que as crianças gostam. Eu aprendi a ler por causa de histórias em quadrinhos só que hoje a gente já tem novos autores que estão produzindo material para outros públicos. No caso do “Cumbe”, é um quadrinho direcionado a jovens e adultos pelo seu conteúdo, porque exige também do leitor compreender minimamente o que é escravidão, ter esse contexto para depois ler a história. Para alguém que não tenha todas essas referências históricas fica um pouco mais difícil, como é o caso das crianças. Tenho projetos no futuro de falar sobre discriminação e racismo no formato de quadrinhos para crianças. Muitos autores fazem quadrinhos para adultos para mostrar que é possível ter histórias tão complexas como no cinema e literatura.
Como vê o mercado de quadrinhos hoje?
No Brasil há um mercado razoável, tem muita gente fazendo bons quadrinhos. Grande parte desses autores tem foco nesse público mais adulto. Hoje, a gente está numa situação muito especial, num momento instável, tanto por causa dessa crise internacional, que agora começa a atingir também o Brasil – isso afeta um pouco o envolvimento do público com esse tipo de obra. Além disso, temos muitas outras formas de entretenimento, jogos, cinema, novos formatos utilizando Tablet, Ipad, Kindle, etc. É um momento sinuoso, algumas pessoas apostam nesse formato eletrônico, outros ainda em papel. Já existe certo público que procura esse tipo de quadrinhos, mas ainda existe um aficionado. No caso do “Cumbe” isso mudou um pouco. É bem interessante porque muita gente que não lê quadrinhos procura o livro por causa do tema e da perspectiva sobre a história. Por causa disso o livro está conseguindo certo destaque internacional que eu não imaginava.
A história da escravidão vai ser objeto de algum novo projeto? O que está preparando?
O meu projeto atual é fazer uma história sobre Quilombo dos Palmares, foi daí que surgiu o “Cumbe”. Comecei em 2006, é um trabalho de umas 350 páginas só sobre a saga de Palmares, falando de Zumbi mas também de Ganga Zumba, de Domingos Jorge Velho e de outros. A ideia é tê-lo pronto até o fim de 2016.
Entrevista original publicada no site Rede Angola.
Amarílis Borges
Acesse no site de origem: ‘Na literatura brasileira, mesmo sobre escravidão, protagonistas são brancos’, diz autor de HQ sobre resistência negra (Opera Mundi, 03/06/2015)