(UOL Notícias Internacional, 12/01/2016) Os acontecimentos de Colônia, na Alemanha, foram cometidos por uma turba criminosa sexista e, em reação, provocaram o aumento da turba digital racista. O incidente mostrou que a maior parte do público não se importa muito com a violência sexual, a não ser quando vem de estrangeiros.
Os “acontecimentos de Colônia” no Ano-Novo são uma formulação fácil de ser digitada ou, para os políticos e funcionários públicos, de ser falada em um microfone. Mas fazê-lo é o primeiro erro. A palavra “acontecimentos” parece tão passiva, tão inevitável… Mas o que aconteceu em Colônia foi mais que destino, foram ataques sexuais violentos cometidos contra mulheres por grupos de homens. E, se os números e os relatos forem verdadeiros, poderemos usar um termo que está entre os mais feios em um contexto social: turba.
Uma turba é um grupo de pessoas que estabelece uma dinâmica social na qual quase todas as outras regras são ignoradas. O resultado é muitas vezes a violência. Uma turba é um espaço móvel, transitório, extrajurídico, estabelecido por pessoas que temporariamente se despem do fino verniz da civilização.
As redes sociais, especialmente Facebook e Whatsapp, assumiram uma complexa série de funções na Alemanha. Elas constituem esferas públicas alternativas, mas também são plataformas de documentação, discussão e organização. Isso parece ótimo, e às vezes é, mas nem sempre. Porque no rastro dos ataques cometidos no Ano-Novo em Colônia também se pode ver como são criadas as turbas online. E é possível avaliar o grau em que elas podem escalar da internet para o mundo real.
A maneira como os ataques de Colônia estão sendo percebidos, discutidos e processados nas redes sociais valeria uma dúzia de estudos de catástrofes sociológicas, mas os “acontecimentos de Colônia” devem ser examinados desde o início.
Uma visão sóbria
O que exatamente aconteceu lá não pode, pelo menos por enquanto, ser descrito tão precisamente quanto muitos gostariam, o que dificulta para as pessoas encaixá-lo em sua visão de mundo específica. Se quisermos dar uma olhada mais sóbria no que foi estabelecido até agora – examinando vídeos, reportagens na mídia, relatórios de polícia e depoimentos de testemunhas-, surge a seguinte imagem:
Um grupo de aproximadamente mil pessoas, fortemente influenciadas por bebidas alcoólicas, decidiu que, para comemorar o Ano-Novo, era necessário disparar fogos de artifício contra outras ou contra si mesmas. Isto é sem dúvida uma imbecilidade, mas na embriaguez em massa que muitas vezes acompanha as explosivas comemorações de fim de ano é um absurdo aceito neste país. Desse grupo de pessoas, pequenas turbas de até 40 homens se formaram, aparentemente com o plano de atacar mulheres com a intenção de roubá-las e violentá-las.
A polícia falou em “crime organizado” e, de modo perturbador, em “agressores reincidentes, conhecidos pela polícia”. Ao mesmo tempo, porém, parece que um clima agressivo havia se estabelecido na praça diante da estação ferroviária de Colônia que ia além desses bandos, um ambiente de sexismo e violência contra as mulheres.
Com base em muitos depoimentos coincidentes de testemunhas, a polícia falou em “homens com aparência norte-africana ou árabe”, referindo-se ao grupo maior e aos pequenos bandos que saíram dele. Essa informação lançou um processo de comunicação social que é feito quase exclusivamente de precipícios e armadilhas.
Sim, porque existe uma imagem problemática das mulheres nos círculos culturais muçulmanos. E, sim, deve-se investigar como essa imagem das mulheres poderia levar à violência na Alemanha também – especialmente quando se formam turbas que podem estar ligadas a esses círculos culturais (por favor, notem a palavra “podem”).
Origens culturais
Também é legítimo e necessário incluir na investigação as origens culturais dos grupos de agressores. Qualquer outra coisa seria contraproducente, porque as turbas são formadas pela intensificação explosiva das correntes sociais preexistentes. Esse é o motivo pelo qual as turbas na Alemanha perseguem pessoas de aparência estrangeira: é a detonação do racismo já presente em nossa sociedade e cultura. É fácil imaginar o mesmo acontecendo em sociedades e culturas nas quais o sexismo já está presente.
Neste contexto, porém, é essencial diferenciar as pessoas que cometeram crimes em Colônia e as que são consideradas parecidas com as que cometeram crimes em Colônia. Isso é crucial, e também é extremamente difícil, porque a diferenciação está muito próxima da banalização. E também porque a justificada repugnância aos ataques leva ao ódio – e o ódio é a emoção menos interessada em examinar contexto e origem. Mas é absolutamente necessário: diferenciação é civilização.
Ser civilizado quer dizer que, mesmo depois que você encontra nove pessoas de cabelo preto que se mostram imbecis, você não dá um soco na décima pessoa que encontra só porque ela tem cabelo preto. Não há um catalisador que de repente torna o racismo aceitável. As pessoas que, contra o pano de fundo dos ataques em Colônia, de repente se perguntam se talvez as generalizações racistas estariam certas, afinal, eram racistas o tempo todo e simplesmente tinham medo de se expor.
Uma turba digital
É aqui que entram em jogo as redes sociais (e em parte profissionais). No rastro da turba do Ano-Novo em Colônia, uma aparentemente (creio) inédita onda de indignação racista despencou sobre a internet em alemão –uma onda que tem todos os elementos para ser uma turba digital:
*generalizações misantrópicas radicais (que misturam os agressores de Colônia com todas as pessoas parecidas com eles, como os refugiados);
*uma redução acelerada das inibições criadas pelo reforço mútuo (todas as transgressões racistas afastam um pouco mais os limites do que parece aceitável);
*a disseminação de uma sensibilidade quase política como justificativa para ideias e atos radicais;
*pedidos de planos concretos para atos de vingança combinados com ameaças de violência contra aqueles que representariam o mecanismo da turba.
Os radicais de direita em Colônia, por exemplo, já se organizaram para caçar estrangeiros. Uma turba tem de ser confrontada por uma contraturba – o que é, para a civilização, o pior cenário possível. Especialmente reveladores são os pedidos racistas e sexistas para ir a Colônia ostensivamente “proteger nossas mulheres”. Quando exatamente as pessoas que passam o ano dizendo às mulheres para abotoarem suas blusas de repente começam a promover os direitos das mulheres, é racismo instrumentalizado.
Algumas perguntas
O súbito interesse pelos direitos das mulheres é fingido e não passa de um argumento falso para legitimar o próprio racismo. A banalização da violência sexual é generalizada e está profundamente enraizada na sociedade e na cultura – também na sociedade e na cultura alemãs. Os ataques contra mulheres cometidos por turbas de homens em Colônia seriam uma oportunidade propícia para abordar essa situação e para se perguntar por que a maioria do público alemão se importa tão incrivelmente pouco com a violência sexual, a não ser quando é cometida por “homens de aparência norte-africana ou árabe”.
Em paralelo a isto, há o fato de que os pedidos de uma reação dura das autoridades policiais são tolos. Tal reação é tão obviamente necessária e também extremamente barata. A dureza não custa nada.
Em vez disso, as estruturas e narrativas devem se concentrar nas famílias muçulmanas e em outras famílias, no sistema educacional, na administração civil, na sociedade em geral. Quais são os fatores que contribuem para o desenvolvimento dessas turbas, além dos que estavam obviamente presentes: a reunião de homens bêbados, sexistas e criminosos? O que as autoridades realmente fazem sobre “agressores reincidentes, conhecidos pela polícia”?
Como podemos evitar a criação de contraturbas racistas que decidem incendiar abrigos de refugiados porque eles hospedam pessoas que são parecidas com os agressores de Colônia? E, finalmente, a questão principal: como podemos confrontar o problema (mundial, intercultural e também alemão) da violência contra as mulheres sem agir como se ele só tivesse a ver com alguns criminosos em Colônia?
Conteúdo do Der Spiegel
Sascha Lobo
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Acesse no site de origem: Opinião: Denúncias de ataques sexuais em Colônia são desculpa para xenofobia? (UOL Notícias Internacional, 12/01/2016)