(UOL, 08/03/2016) O símbolo da Justiça é uma mulher, a deusa Têmis, de olhos vendados. E, durante muitos anos, a cúpula do Poder Judiciário esteve cega para a presença feminina.
A primeira mulher a ingressar no STF (Supremo Tribunal Federal), a instância máxima da Justiça brasileira, o fez somente no ano 2000. Foi a ministra Ellen Gracie.
Mas ela não foi a primeira mulher a adentrar a cúpula do Judiciário no país. Este título pertence à ministra Cnéa Cimini, nomeada para o TST (Tribunal Superior do Trabalho) em 1990. Depois, veio o STJ (Superior Tribunal de Justiça), que teve a primeira ministra do sexo feminino em 1999 — Eliana Calmon.
No TSE (Tribunal Superior Eleitoral), a primeira mulher a ocupar um assento na Corte também foi Ellen Gracie, em 2001 (no TSE, algumas das cadeiras são de ministros “emprestados” de outros tribunais).
Por fim, o STM (Supremo Tribunal Militar) abriu espaço para uma integrante do sexo feminino em 2007, com a indicação da ministra Elizabeth Rocha.
Hoje, todos os cinco tribunais da elite do Judiciário têm ao menos uma mulher em sua composição. Mas, na balança da Justiça, o lado masculino ainda pesa mais: dos 89 ministros atualmente em exercício, só 16 são mulheres — o número cai para 15, se consideramos que o TSE tem uma ministra “repetida” do STJ. Na ponta do lápis, são 18% de mulheres contra 82% de homens.
Evolução histórica
Comparado a outros poderes, o Judiciário está até mais equilibrado na questão de gênero.
Há apenas uma governadora nos 27 Estados e, no Legislativo, em 2014, elegeram-se apenas 51 mulheres para a Câmara, 9,9% do total.
O que não significa que os 18% na elite de ministras sejam suficientes, e isso vem de longe. “Se a gente olhar para o passado, nenhuma corte superior no Brasil tinha mulher. E hoje tem”, afirma Maria Tereza Sadek, professora da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora do Cebepej (Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais).
A presença feminina nas cortes é recente mesmo se considerarmos a primeira e a segunda instâncias. De acordo com uma pesquisa da AMB (Associação de Magistrados Brasileiros) coordenada por Sadek, até o final da década de 1960, apenas 2,3% dos magistrados eram mulheres — nos tribunais superiores, era zero.
No fim da década de 70, a fatia de magistradas subiu a 8% e chegou a 14% nos anos 1980 para alcançar 22,4% em 2005, ano de publicação da pesquisa.
Atualmente, o dado oficial mais recente que se tem é o Censo do Poder Judiciário de 2014, feito com informações coletadas em 2013 pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). O resultado: homens eram 64% dos magistrados, contra 36% de mulheres.
Para a professora Maria Tereza, o quadro tende a melhorar, tendo em vista que na primeira instância o acesso aos cargos de juiz se dá por concurso, o que diminui a chance de haver discriminação por gênero.
Com a palavra, as ministras
Três ministras de tribunais superiores ouvidas pelo UOL concordam.
“O concurso público preserva o anonimato. No momento em que é assegurado o anonimato, não podemos falar em discriminação, e isso no primeiro e no segundo grau nós temos assegurado”, diz a ministra Cristina Peduzzi, do TST.
“Houve um avanço porque a história não caminha para trás. Mas ainda há muito que se fazer para buscar a efetiva igualdade entre homens e mulheres dentro do Poder Judiciário”, afirma Elizabeth Rocha, ministra do STM.
O problema é que, para os tribunais superiores, as indicações são políticas — os ministros são nomeados pelo presidente da República. E, em alguns deles, como TSE e STJ, há uma lista tríplice prévia feita por integrantes do próprio tribunal, que encaminhem três nomes para escolha Executivo.
“Quando a escolha é política, fica sempre mais complicado, o funil é mais estreito”, afirma Elizabeth.
“Você vê, as duas listas tríplices [para as duas vagas recentes do STJ] não tinham nenhuma mulher. De seis nomes, não tinha nenhuma mulher. Quem faz a lista são os ministros da corte e é muito difícil você conseguir furar esse bloqueio”, diz Luciana Lóssio, ministra do TSE.
Cristina afirma que, apesar disso, o critério político não tem impedido o acesso das mulheres. “Acho que as nomeações políticas para tribunais superiores têm sido bem equânimes.”
As ministras também concordam que a indicação de mulheres para as cortes superiores tende a aumentar naturalmente. “É uma consequência natural do aumento e da prevalência nos últimos concursos, da admissão de mulheres na base. Naturalmente isso vai se refletir no segundo grau e nos tribunais superiores”, afirma Cristina.
Entretanto nem mesmo as integrantes da cúpula do Judiciário estão livres de discriminação, ainda que velada. “Eu nunca tive nenhum episódio concreto de discriminação. Mas a verdade é que existem aqueles grupos de homens que se formam, ficam encastelados, e é difícil você conseguir adentrar”, relata Luciana.
E como elas conseguiram chegar ao topo do Judiciário? As três magistradas atribuem a posição que ocupam atualmente a uma combinação de muito estudo, dedicação e uma cota de sacrifício pessoal.
“Não tenho nenhuma circunstância que tenha marcado qualquer tipo de discriminação, mas ela existe. Mas, se a mulher se dedicar 100% à profissão e muitas vezes se sacrificar, ela não vai sofrer discriminação. Só que o sacrifício pessoal sempre deixa sua marca, e isso não sei se é o desejável”, relata Cristina.
“Eu sei que realmente existe um preconceito de gênero muito forte. Não nego. E, para poder compensar essa desigualdade, eu sempre dediquei a minha vida ao estudo”, acrescenta Elizabeth. “Eu repensaria se valeu a pena ter feito certos sacrifícios, ter aberto mão de certas escolhas para poder estar aqui hoje.” Um desses sacrifícios, segundo ela, foi não ter tido filhos. “Eu adiei o meu projeto de maternidade em nome da minha carreira profissional, e, eu digo isso abertamente, ficou tarde demais. E eu lamentei muito porque eu acho que nós mulheres temos direito a tudo: temos direito a ser mães, a ser boas profissionais, a termos um casamento feliz.”
Apesar dos sacrifícios pessoais, o esforço feminino no Judiciário tem ao menos a esperança de dias melhores pela frente: neste ano, pela primeira vez haverá ao mesmo tempo duas mulheres no comando das duas principais instituições do Judiciário: no STF, assumirá a presidência a ministra Cármen Lúcia e, no STJ, a ministra Nancy Andrighi. Agora é que são elas.
Marina Motomura
Acesse no site de origem: Por que há tão poucas mulheres na cúpula do Judiciário? (UOL, 08/03/2016)