(Rede Brasil Atual, 02/04/2016) Autor de livro sobre o tema, a ser lançado quinta (7), jornalista questiona o porquê de apenas um caso ser conhecido oficialmente até hoje. E lamenta que o país não se esforce para investigar
Histórias envolvendo sequestro de bebês são comuns em países vizinhos, especialmente na Argentina, Chile e no Uruguai. O escritor Eric Nepomuceno, por exemplo, lançou no ano passado A Memória de Todos Nós, trazendo detalhes de alguns casos ocorridos durante as ditaduras latinas. Chama a atenção a falta de relatos de episódios dessa natureza no Brasil. O livro Depois da Rua Tutoia (11 Editora), a ser lançado na próxima quinta-feira (7), em São Paulo, traz um pouco de luz à escuridão de informações que ainda costuma ocorrer quando o assunto é memória. “Como pôde haver tantos sequestros de recém-nascidos na Argentina (cerca de 500, com 149 já reconhecidos e identificados), no Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia, e aqui nada?”, questiona o autor, o jornalista Eduardo Reina, 52 anos.
A Rua Tutoia é um tristemente conhecido endereço na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Ali, funcionou uma das grandes máquinas de repressão e tortura, a Operação Bandeirante (Oban), financiada por empresários, e posteriormente o DOI-Codi. O local abriga hoje o 36º Distrito Policial. O prédio foi tombado pelo Patrimônio Histórico em 2014, mas preserva pouco de suas características originais. Ativistas de direitos humanos querem transformá-lo em um centro de memória.
Reina gostaria de fazer um livro-reportagem, mas optou por escrever um romance baseado em histórias reais. “Há muitas lacunas entre as histórias verdadeiras que precisam de documentos e declarações”, argumenta.
O autor conta que, no lançamento, uma novidade tornará o livro quase interativo: “Os três primeiros capítulos são documentos do Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e DOI-Codi sobre a investigação sobre os pais biológicos de Verônica (personagem do romance). Documentos com informações sigilosas. E eles estarão dentro de um envelope no começo do livro, com o timbre de confidencial. O leitor terá de rasgar esse envelope para ler o que ele contém”.
Ele lembra que o único caso registrado oficialmente no Brasil é o de Lia Cecília da Silva Martins, empresária de 41 anos, conforme registro do pais adotivos, que mora no Rio de Janeiro. Lia foi sequestrada ainda bebê e levada a um internato em Belém por dois militares que atuaram contra a Guerrilha no Araguaia – em 1974, ela foi para um creche. Seria adotada anos depois. O tempo passou, e em 2009 Lia Cecília leu no jornal O Estado de S. Paulo uma notícia sobre crianças sequestradas no Araguaia, citando a existência de um bebê branco que poderia ser filho de um militante morto. Um exame de DNA feito no ano seguinte indicou haver mais de 90% de compatibilidade genética de Lia ser irmã dos filhos de Antônio Theodoro de Castro, o Raul, filiado ao PCdoB, desaparecido no Araguaia quando tinha 29 anos.
O sequestro de bebês em países como Argentina e Uruguai tornou-se uma triste rotina durante as ditaduras, mas também houve, e ainda há, uma mobilização permanente para encontrá-los e identificar suas verdadeiras famílias. Por que isso não aconteceu no Brasil?
Imagino que por falta de informação. Hoje estão em tramitação na Justiça oito processos que podem revelar casos de sequestro de bebês na ditadura. São todos envolvendo guerrilheiros que lutaram no Araguaia.
Da mesma forma, as comissões da verdade em outros países sul-americanos parecem ter causado impacto maior do que aqui, onde aparentemente há uma tentativa de fazer tudo cair no esquecimento. Apesar dos esforços de tantas pessoas e entidades, o país não se esforça para resgatar sua memória? Falta coragem, vontade política?
O país não se esforça. Desde o fim da ditadura, em 1985, nenhum presidente foi mais firme e determinou uma investigação mais aprofundada sobre esse tema. Ou mesmo para punir aqueles responsáveis por tortura e pessoas desaparecidas. Falta vontade política. O jogo é pesado. Hoje, muitas pessoas que estiveram envolvidas coma repressão, atuando nela ou financiando-a, ainda estão na ativa. São empresários, banqueiros, ex-ministros, políticos etc. Uma investigação mais detalhada ou mesmo o aparecimento de listas com denúncias sobre essas pessoas seria devastador. O máximo que o Brasil avançou são as Comissões da Verdade.
Qual o ponto de partida do livro? O que despertou seu interesse?
Duas histórias, que eu costurei e as tornei apenas uma. A primeira teve como base a ação de Herbert de Souza, o Betinho, no Jardim Zaira, na cidade de Mauá (na região do ABC paulista). Ele era da AP (Ação Popular) e desenvolvia um amplo trabalho de conscientização da população mais carente, trabalhou numa fábrica de porcelana nessa cidade. Foi perseguido e preso, como os personagens que são os país biológicos da bebê sequestrada no meu livro.
A outra ponta – a outra história – faz chegar o texto até hoje. Uma amiga contou a história de uma mulher que virou freira, mas era apaixonada por um homem, que era casado. Tempos depois, eles se reencontram com o homem em busca dela, que estava trabalhando na Igreja em Roma. Ele a convence a ela larga a vida religiosa para ficar com ele.
Essa mulher, que não conheço pessoalmente, vai estar presente no lançamento. Ela mora no Rio e estará presente no dia 7, com o marido e com a filhinha recém-nascida. Essa parte da história também é muito importante para o livro, porque a Verônica (a bebê sequestrada) vive uma vida muito atormentada, em busca de seu verdadeiro eu. E sempre em busca da verdade. Ela cruza com a mãe biológica em vários momentos da história. E o final é bastante surpreendente, envolvendo a duas.
Importante dizer que eu quero tornar público e ampliar esse assunto polêmico do sequestro de bebês na ditadura no Brasil. Como pôde haver tantos sequestros de recém-nascidos na Argentina (cerca de 500, com 149 já reconhecidos e identificados), no Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia, e aqui nada? Apenas um caso real identificado (graças à própria vítima, que foi atrás de sua história, fez DNA etc.)
Seu livro é um romance baseado em histórias reais. Por que a opção por esse formato?
Porque é difícil obter documentos que comprovem a ação de militares e de agentes da repressão no sequestro de bebês no Brasil. Gostaria muito de escrever um livro reportagem sobre o assunto. Mas não foi possível. Há muitas lacunas entre as histórias verdadeiras que precisam de documentos e declarações.
A obra trata também de outros aspectos menos conhecidos da ditadura, como o financiamento empresarial à repressão. Ativistas cobram punição. Você acredita que isso ainda poderá acontecer?
Acredito que isso poderá acontecer um dia. Pelo menos é o que espero. Há várias teses e livros que descrevem esses episódios, com detalhes. Mas falta vontade política para fazer esses processos andarem. São muitas pessoas (empresários, banqueiros etc) envolvidas na captação de dinheiro que financiava os órgãos de pressão, principalmente a Operação Bandeirante e o DOI-Codi.
Na apresentação, fala-se em um “único caso existente e praticamente comprovado”. A sua investigação permite supor quantos casos podem ter ocorrido por aqui? Já foi procurado por alguém depois que o livro saiu?
Eu cruzei muita informação para tentar chegar a esse número da sua pergunta. O caso único é da Lia Cecília da Silva Martins, uma empresária que mora hoje no Rio de Janeiro. Há outros oito casos de guerrilheiros do Araguaia que tramitam na Justiça. Mas pode haver muito mais. É preciso ter acesso a documentação e, principalmente, que pessoas comecem a contar as histórias que conhecem. Essas informações cruzadas são de histórias que ouvi dizer com dados de Comissões da Verdade nacional e de estados, além de livros escritos e editados pelos próprios militares, como o famoso Projeto Orvil.
Outro ponto que me leva a crer nessa existência foi o modo de operação semelhante entre os países do Cone Sul na repressão aos opositores das respectivas ditaduras. Havia uma aliança política militar estratégica entre Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia. As cabeças que mandavam e as mãos que executavam as ações tiveram treinamento nos Estados Unidos. E os militares desses países agiam em consonância e do mesmo modo contra as oposições.
Você “descobriu” uma pessoa de quem tinha conhecimento apenas da história. Como foi isso?
A descoberta da Lia Cecília veio com essa pesquisa e leitura de livros. Ela consta do livro Infância roubada – crianças atingidas pela ditadura militar no Brasil, elaborado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, cujo presidente, Adriano Diogo, escreveu o prefácio do meu livro. A história dela é muito legal, pois quando pequena desconfiava ser adotada, até que a família contou a ela. O bichinho da curiosidade ficou dentro de Lia Cecília, e o acaso ajudou muito nessa descoberta. Ela viu num jornal uma notícia sobre guerrilheiro do Araguaia e achou que era muito parecida com ele. Mas só depois que os pais adotivos morreram Lia teve coragem de ir atrás de sua verdadeira história. Ela procurou o jornal, o repórter que fez a matéria com o suposto pai (o guerrilheiro). Achou o endereço da família desse guerrilheiro e fez uma visita. Achou os outros filhos do homem muito parecidos com ela. Fez o DNA e resultou positivamente.
Vitor Nuzzi
Acesse no site de origem: Sequestro de bebês, uma rotina nas ditaduras latinas. E o Brasil? (Rede Brasil Atual, 02/04/2016)