(Folha de S. Paulo, 31/05/2016) “Abuso sem agressão física é história mal contada; se fosse estuprada, estaria toda machucada, arranhada e debilitada; deve estar pensando em indenização do Estado; estranho que uma jovem de 16 anos, estuprada por horas, por mais de 30 homens, não apresente nenhum sinal de violência; mulher tem que se dar o respeito, as atitudes e formas de se vestir muitas vezes contribuem para alguns desfechos desagradáveis; essa história está muito mal contada pela mocinha, o histórico dela não é nada favorável; quem ficou com dó dela que a leve para casa, quem sabe ela não faz uma orgia com o marido, namorado ou até mesmo com o pai de vocês; ela nem estaria viva se fosse estupro, historinha pra boi dorme isso sim; me espanta um estupro coletivo com 30 homens e a menina andando normalmente, é evidente que a criatura já está habituada com essas festinhas.”
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Se você ainda tem estômago para seguir na leitura, vamos lá. Esses foram alguns dos comentários na internet sobre o caso do estupro coletivo no Rio em reportagens publicadas em três jornais de circulação nacional (Folha, O Globo e o Estado de S.Paulo).
O teor revela o que alguns estudos já concluíram: a vida pregressa da vítima continua sendo a peça fundamental na constituição de sua inocência ou não no estupro. Pelo menos aos olhos da sociedade.
Em artigo intitulado “Crime de estupro: até quando julgaremos as vítimas”, publicado no portal “Observatório do Governo Eletrônico”, da Universidade Federal de Santa Catarina, os autores Eduardo Cabette e Verônica de Paula analisam dois casos de estupros coletivos ocorridos em 2012, que, a exemplo do caso no Rio, tiveram grande repercussão.
O primeiro foi o caso da universitária indiana de 23 anos violentada, espancada e morta por seis homens (um deles menor de idade), dentro de um ônibus, em Nova Deli, quando voltava da universidade.
No outro caso, duas garotas brasileiras de 16 anos foram até o ônibus da banda baiana New Hit para pegar autógrafos e foram estupradas pelos seis integrantes. Além do relato das vítimas, o crime foi comprovado por exame feito nas roupas íntimas das meninas onde foram achados vestígios de sêmen de vários homens.
São dois casos que guardam muitas semelhanças entre si e que despertam sentimentos de indignação. Mas não aos olhos da sociedade. Pelo menos da sociedade que posta comentários na internet.
Em relação ao caso na Índia, os comentários expressam um profundo sentimento de empatia com a vítima. A jovem estava voltando da universidade, estava coberta, então, ela é “mulher honesta”. Os agressores são “monstros”, “que Deus ajude a família da jovem”, são alguns dos comentários.
O oposto acontece com as garotas brasileiras. Para os leitores, elas não tinham que estar num show onde as letras são repletas de duplo sentido e a coreografia da banda é explicitamente sexual. “O que elas foram fazer dentro de um ônibus cheio de homens?” “Elas estavam querendo!”. Também culpam os pais das meninas por terem permitido a ida ao show.
Na Índia, os estupradores quase foram linchados pela população e houve dezenas de manifestações internacionais, pedindo leis mais rígidas e maior segurança para as mulheres. No Brasil, o cenário foi completamente diferente: as duas jovens é que foram ameaçadas de morte, tendo até mesmo que entrar para o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM).
Quando os integrantes da banda New Hit foram presos, uma multidão se formou em frente à delegacia pedindo para que os homens fossem libertados. Eles tiveram a prisão preventiva decretada e foram transferidos para o presídio de Feira de Santana. Após 38 dias presos, conseguiram habeas corpus aceito pelo Tribunal de Justiça da Bahia. Ao saírem da prisão, foram recepcionados por várias pessoas, entre elas mulheres, comemorando a liberdade.
Como veem, só mudam os atores e os cenários. A impiedosa e moralista plateia permanece a mesma, sempre desmerecendo, julgando e condenando as vítimas de estupro que não se enquadram no padrão “bela, recatada e do lar”.
Acesse o PDF: Até quando julgaremos as vítimas de estupro?, por Claudia Collucci (Folha de S. Paulo, 31/05/2016)