(Folha de S.Paulo, 14/06/2016) Ao completar dez anos de existência a lei 11.340/2016 – Lei Maria da Penha – consolida-se como um dos mais importantes paradigmas jurídicos para o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher. Essa relevante legislação está em vias de ser alterada pelo projeto de lei – PLC 07/2016.
Entendo que há dois problemas no projeto de lei. Um de legitimidade e outro de constitucionalidade. Sem dúvida que o Congresso Nacional pode alterar a lei Maria da Penha. Mas o problema está no fato de querer fazê-lo, assodadamente, excluindo os movimentos feministas e de mulheres, principais artíficeres da lei Maria da Penha. Considero obrigatório lembrar que a lei Maria da Penha é fruto de uma proposta de um Consórcio Nacional de ONGs feministas (Themis, Cladem, Cepia, Cfemea e Advocaci) e do movimento mulheres, com apoio de juristas aliadas, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e de parlamentares feministas e não feministas comprometidas com as lutas das mulheres. Talvez alguns parlamentares não recordem, mas a lei Maria da Penha levou mais de dois anos para ser construída e, alterá-la em apenas poucos meses, sem nenhuma consulta ou discussão com o movimento de mulheres, aparece como uma afronta.
Aí reside, no meu entendimento, o problema da legitimidade social. E o mais interessante é que a alteração está sendo proposta por Delegacias da Mulher que, quando da elaboração da lei, foram majoritariamente contrárias às novas atribuições a elas conferidas. O argumento era de que a atividade principal das delegacias era investigativa.
O PLC pretende acrescentar três artigos à lei, todos alusivos à atividade policial: o art.10-A e seus dois parágrafos referem-se à inquirição da mulher e testemunhas estabelecendo diretrizes e procedimentos para resguardar os interesses e direitos humanos das mulheres, o atendimento ininterrupto (24 horas), ambiente adequado e profissionais capacidados. A segunda mudança (art.12-A) respeita à criação de Núcleos de Atendimento de Feminicídio no âmbito das DEAMs, ou seja, as DEAMs passariam investigar os feminicídios, ampliando sua competência. As duas primeiras alterações objetivam melhorias no atendimento e a ampliação do seu papel investigativo. Essas mudanças correspondem a antigas e permanentes reivindicações dos movimentos de mulheres que há muito denunciam a ausência de plantões 24h, a falta de capacitação e a revitimização das mulheres nas delegacias de polícia quando do registro de crimes praticados com violência doméstica e familiar. Nesse sentido, estão em consonância com as reivindicações dos movimentos de mulheres e com a conclusão da CPMI da Violência contra a Mulher, do Congresso Nacional. No Relatório Final (2013) a CPMI diagnosticou a precariedade da estrutura das DEAMs em todo o país (exceto no Distrito Federal), o número reduzido de policiais, a ausência de capacitação, inquéritos policiais (Ips) parados e muitos prescritos, ou seja, uma série de problemas decorrentes do baixo investimento e do pouco prestígio que essas unidades recebem dos governos estaduais. Assim, os artigos 10-A e 12-A buscam corrigir essas deficiências. No entanto, como o Relatório da CMPI pontua, os problemas só serão sanados se houver recursos e investimentos nas DEAMs. Entretanto, a terceira alteração – inclusão do art.12-B é ainda mais problemática, não apenas pelos obstáculos estruturais, mas por uma exagerada ampliação do poder policial. O artigo pretende conceder à autoridade policial, atribuição para a concessão de medidas protetivas de urgência, prerrogativa do poder judiciário, conforme a Lei Maria da Penha. Este obstáculo, de natureza constitucional, parece intransponível.
A proposta não é nova e foi rejeitada pela CPMI da Violência Doméstica e Familiar, em 2013. A proposição do art. 12-B já havia sido apresentada por delegados, com apoio da DEAM/DF, à então relatora da CPMI, senadora Ana Rita. O argumento era que as medidas protetivas demoravam para serem concedidas pelo poder judiciário. A proposta não foi acolhida pela então relatora por ser inconstitucional, uma vez que pretendia retirar do Poder Judiciário a atribuição da jurisdição. Não discordo de que o Poder Judiciário nem sempre responde com a agilidade que a lei estabelece e não rara vezes, a visão de muitos magistrados e magistradas não se coaduna com os objetivos da lei. No entanto, isso não pode servir de justificativa para querer suprimir a atribuição constitucional do Poder Judiciário da prerrogativa da jurisdição e toda a principiologia constitucional nela envolta, e criar problemas adicionais. Nesse sentido, o art. 12-B viola princípios constitucionais, dentre os quais, o da jurisdição e da investitura, da indelegabilidade, do juiz natural, dentre outros. O grande mérito da LMP foi criar medidas protetivas de urgência e preservar os direitos do acusado, denunciado ou réu. Mesmo aqueles que ainda divergem da lei, não negam que a lei não feriu nenhum princípio constitucional de quem comete a agressão, até porque, frise-se, seu objetivo foi colocar à disposição das mulheres, as medidas de proteção a serem deferidas pelos juizados especializados de violência doméstica e familiar.
A proposta subverte a lei Maria da Penha e transforma a polícia em ‘super polícia’, ou seja, reforça o Estado Penal (Wacquant). A Lei Maria da Penha nunca pretendeu reforçar o estado policial, mas garantir os direitos das mulheres sem violar direitos dos acusados ou processados. Além disso, há problemas adicionais. Como apontou a CPMI, as DEAMs em todo país padecem de recursos humanos, financeiros e materiais. Pergunta-se: quem irá entregar as intimações aos acusados? A vítima? As DEAMs não possuem efetivo para tanto. Caso as DEAMs desloquem seu efetivo para essa atividade, como ficam os inúmeros inquéritos policiais (IPs) inconclusos e que não chegam ao poder judiciário? Não seria melhor as DEAMs reforçarem suas atividades de investigação, encaminharem os IPs ao Poder Judiciário, e de fato, concentrarem esforços para investigar os feminicídios em conformidade às Diretrizes Nacionais de Feminício? Por que ampliar sua atribuição (inconstitucional) sem ter, de fato, condições para tal? Dito de outro modo, não há como sustentar essa proposta. As DEAMs não possuem atribuição constitucional e nem estão aparelhadas para tal. Mudar a lei Maria da Penha requer responsabilidade e discussão com quem sempre esteve à frente da lei e empenhada na sua implementação. Isto é, o movimento feminista e de mulheres. Querer aprovar alteração na lei sem discussão e sem análise sobre suas repercussões é casuísmo. Tenho certeza que as DEAMs estão preocupadas com a melhor implementação da lei. No entanto, as mudanças devem ser bem discutidas e suas repercussões avaliadas. Como mudar a lei Maria da Penha? Em discussão com o movimento de mulheres. Para que? Garantir a cidadania feminina sem ferir direitos. Lamentavelmente o art. 12-B do PLC 07/2016 não atende a nenhum desses requisitos sendo contestado pelas instituições de justiça (Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública). Não há problema em mudar da lei, desde que seu objetivo seja claro e precedido de ampla discussão. Do contrário, pode parecer casuísmo e oportunismo
* Carmem Heim de Campos é Doutora em Ciências Criminais, PUCRS. Professora do Mestrado em Segurança Pública da Universidade de Vila Velha/ES. Assessorou a CPMI da Violência contra a Mulher e integrou o Consórcio Nacional de ONGs que elaborou o anteprojeto da lei Maria da Penha.
Acesse o PDF: Alterar a Lei Maria da Penha: casuísmo ou necessidade?, por Carmen Hein de Campos (Folha de S.Paulo, 14/06/2016)